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O Titanic musical de César Maia

Não faz sentido construir 'o mais sofisticado complexo artístico' na Barra, que está mais para Ivete Sangalo que para Beethoven

Por Sérgio Augusto
Atualização:

O Cristo Redentor anda meio descuidado com o Rio de Janeiro. Também desassistidos por São Sebastião, os cariocas se sentem cada vez mais entregues às baratas e aos traficantes. Roubam-lhes tudo, da carteira aos viadutos (um deles, sobre a Avenida Brasil, foi há dias embrulhado por camelôs com um plástico azul, ao estilo do artista búlgaro Christo, para melhor abrigar os ambulantes); para não falar das informações sigilosas da Petrobrás sobre os megacampos de petróleo e gás na Bacia de Santos, surripiadas de um contêiner entre o Rio e Macaé. Nem as tradições culturais cariocas respeitam mais. O réveillon nas areias de Copacabana virou um baile funk e o desfile das escolas de samba, um feudo da contravenção. Até a bossa nova, a mais fecunda exportação cultural da cidade, nos foi afanada - por americanos e australianos. Em julho de 2003, a Markanna Studios registrou a bossa nova como marca de discos e fitas. Em dezembro de 2006, a DMG Radio, da Austrália, assenhorou-se da palavra para prestação de serviços artísticos. Japoneses e espanhóis também querem tirar uma casquinha. Sem contar a usurpação light debitada a Henri Salvador, trazida à baila esta semana com a morte do cantor e compositor francês. Não procede a lenda - por isso, apenas lenda-, segundo a qual Tom Jobim teria "inventado a bossa nova" depois de ouvir Salvador cantando Dans Mon Île no filme Europa de Noite. Tom nunca admitiu isso; foram outras suas influências, e, das francesas, as maiores, talvez únicas, se chamavam Debussy e Ravel. De mais a mais, Europa de Noite, rodado em 1958 e lançado na Itália em fevereiro de 1959, já estreou no Brasil com Chega de Saudade, Desafinado, Dindi e outros marcos iniciais da bossa nova em todas as vitrolas. Um dia antes de Salvador morrer, o prefeito do Rio lançara o edital de concessão (por 25 anos) da Cidade da Música Roberto Marinho, na Barra da Tijuca. Em tese, uma boa idéia: a zona oeste da cidade não possui espaço para concertos, balé e ópera. Na prática, uma idéia infeliz (dispendiosa e inoportuna), além de contraproducente: foi o próprio O Globo do homenageado Roberto Marinho que denunciou a obra como estapafúrdia e perdulária, em reportagem de Luiz Ernesto Magalhães, publicada na quarta-feira. Orçada, há pouco mais de cinco anos, em R$ 80 milhões, a Cidade da Música sairá por R$ 461,5 milhões, sem contar o mobiliário, ainda por licitar. O Ministério Público já abriu inquérito para apurar as razões do ágio de 476%, já que a inflação, nos últimos cinco anos, não foi além dos 30%. César Maia defende o ágio com uma lógica perversa: "Se custasse o equivalente a US$ 50 milhões (ou R$ 88 milhões), seria risível". Claro que um projeto de salas de concertos, óperas e balés, ocupando uma área construída de 22 mil m² e pretendendo ser "o maior e mais sofisticado complexo artístico do mundo", custa muito caro. E mais ainda se desenhado por um arquiteto francês, pago em euros. Faz sentido um Lincoln Center na Barra da Tijuca? "Não acredito que o público da zona sul enfrentará engarrafamentos para assistir a concertos na Barra", objetou o músico e produtor Tim Rescala - que poderia ter acrescentado que a maioria dos moradores da Barra da Tijuca está mais para Ivete Sangalo do que para Beethoven. Ok, o Lincoln Center não é o modelo da Cidade da Música. Sua inspiração foi a parisiense Cité de la Musique. A inspiração do arquiteto que lhe deu forma? Um transatlântico. Sorte dele não haver geleiras na Barra. Não faz sentido uma Cité de la Musique numa cidade tão cheia de mazelas e carências tremendas nas áreas de saúde, educação e cultura. Mas não tem jeito: o prefeito parece irredutivelmente empenhado em: 1) fazer da Barra uma Dubai tropical e manter o Rio como a Nápoles dos últimos dias (só a Comlurb, companhia municipal da limpeza urbana, que, aliás, deve R$ 4 milhões de IPTU à prefeitura, já perdeu R$ 9,5 milhões de sua verba para tapar o buraco orçamentário da Cidade da Música); 2) ganhar alguma honraria do governo francês; 3) encerrar seu mandato estrepitosamente (ou apoteoticamente, como admitiu numa entrevista, em janeiro), com um faraônico monumento a Erato, a musa da música para lira. (Euterpe era a musa da música para flauta, e a lira, como é sabido, tem muito mais a ver com o nosso César, que, a exemplo de Nero, um dos 12 césares romanos, gosta mesmo é de ver a cidade pegar fogo.) No carnaval, quando o Rio pega fogo no bom sentido, o prefeito viaja para o frio. Nos últimos oito anos, ausentou-se três vezes dos desfiles das escolas de samba. Em 2006, foi a Lisboa, discutir detalhes das comemorações dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil. Este ano, mandou-se para a Europa, para acertar detalhes sobre a Cidade da Música. Em Paris, teve um estalo, não de Vieira, mas de Bouvard e Pécuchet: fazer da França, no carnaval de 2008, o que a vinda de d. João VI foi para o carnaval que passou. Tsk, tsk. Todo mundo viu o que aconteceu com as duas escolas de samba incentivadas pela prefeitura a adotar a instalação da corte joanina no Rio como tema de seus sambas-enredo. A Mocidade terminou em oitavo lugar e a São Clemente caiu do Grupo Especial. Depois dessa, quantas escolas toparão sair na avenida saudando Villegaignon, Duguay-Trouin, Debret, Lévi-Strauss e le père de la bossa nova, Henri Salvador? A Cidade da Música será o quarto e derradeiro projeto monumental do alcaide carioca. Eram cinco, no início de sua gestão, anunciados com o pomposo nome de "Pentágono do Milênio", afinal reduzido a um quadrilátero. O primeiro delírio, uma sucursal do Museu Guggenheim no cais do porto do Rio, saiu logo de cena, sob vaias, evitando-se uma gastança de R$ 400 milhões. O último, agendado para 2004 e protelado pela drenagem de recursos imposta pelos Jogos Pan-Americanos, acabou adiado para novembro deste ano. Mas o prefeito cismou de antecipar sua inauguração para daqui a seis meses. Para satisfazer esse capricho, terá de adiantar o pagamento às empreiteiras. Dinheiro não falta. Ao menos é o que César Maia vive fanfarronando. Em janeiro seus cofres guardavam R$ 3,455 bilhões. Se tinha em caixa tudo isso, por que reservou apenas 0,33% da arrecadação do ISS para a cultura? Por que liquidou o Rio Arte? Por que até hoje não reabriu o Espaço Cultural Sérgio Porto, fechado por um incêndio desde maio de 2007? Por que cancelou o contrato que mantinha os sistemas de som e iluminação dos teatros, além de aparelhos e operadores da rede municipal, à disposição de produções sem patrocínio? Por que remanejou e ceifou verbas previstas para obras de contenção de encostas, conservação da cidade, reforma de hospitais e escolas, limpeza urbana, melhorias e manutenção da iluminação pública, para injetar R$ 140 milhões na Casa da Música? Se não quiser empurrar dívidas para seu sucessor, César Maia terá de gastar R$ 282,2 milhões para fazer zarpar o seu Titanic musical. Como os investimentos previstos no orçamento da Secretaria de Obras para a conservação da cidade não chegam a R$ 44 milhões, sugiro que o nosso César seja premiado com um troféu no formato do instrumento musical que melhor o identifica, a lira.

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