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O vizinho do 11.º andar

Joaquim Guedes - arquiteto morto essa semana em SP; quem era o famoso arquiteto que a cidade engoliu

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Atualização:

A cidade engoliu Joaquim Guedes. Uma Pajero passou em cima dele - atropelou, passou em cima e fugiu sem prestar socorro. Joaquim não morreu. Ficou em estado de choque, balbuciando alguma coisa. Seus óculos entortaram, uma caneta que estava no bolso da camisa espatifou-se. Seu corpo tremia inteiro, caído no meio da avenida. Um carro que vinha no sentido oposto subiu no calçamento do canteiro central, atravessou para o outro lado e iniciou uma perseguição à Pajero. Um motorista estacionou seu táxi na perpendicular, ao lado do Joaquim, de modo a evitar que ele fosse novamente atropelado. A Pajero, de cor prata, viera em alta velocidade. O Joaquim tinha acabado de sair de casa. Foi atingido na faixa de pedestres ou poucos metros adiante - não se sabe. A Pajero sumiu sem que ninguém tenha conseguido anotar sua placa. Joaquim morreu no hospital logo depois. Isso foi no domingo passado. Na quarta-feira, uma pessoa telefonou para o escritório do Joaquim. Falou com Beto, um de seus cinco filhos. Disse que sabia a identidade do sujeito que matara seu pai. Ele tinha uma proposta: R$ 1 mil pela informação. O ser humano é inacreditável. Joaquim Manoel Guedes Sobrinho, o senhor de 76 anos que no domingo atravessava a avenida Nove de Julho, em São Paulo, foi um dos maiores arquitetos brasileiros do século 20. Professor-titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a FAU, ninguém o conhecia pela alcunha mais extensa - era no máximo o Joaquim Guedes. No mínimo e mais comumente, o Guedes. Modernista de alto coturno, aluno aplicado de Vilanova Artigas, foi autor de quase 500 projetos, entre traçados de cidades, edifícios, escolas, hospitais, casas, fóruns de Justiça, distritos industriais, teatros, bibliotecas, câmpus universitário, fábrica, motel, conjunto habitacional. No prédio onde morava - o último trabalho de Rino Levi, construído na Nove de Julho quase esquina com Groenlândia -, Guedes desenhou a mesa do hall de entrada. Para o irmão que é padre, projetou um cálice. Mas foram mesmo as residências que fizeram sua fama, ao lado da capacidade ímpar de brigar com Deus e todo o mundo. Gostava de concreto, tijolo, madeira, vidro e tudo o que fosse possível explorar de maneira "racional e econômica", conforme ensina a professora de arquitetura Mônica Junqueira de Camargo, autora do livro Joaquim Guedes (Cosac Naify, esgotado). Tinha absoluto desprezo pelo "mero exibicionismo formal". Em entrevista à Veja, em 1986, desceu a lenha nos "lances escultórios" de Oscar Niemeyer: "Quando se olha para o Copan, o que chama a atenção é a majestosa forma em S. Dentro do prédio, no entanto, reina uma bagunça babélica. É um prédio que não serve para morar nem para trabalhar". Em seus primeiros anos de profissão, ainda na década de 1950, Joaquim Guedes produziu intensamente. Participou, por exemplo, do concurso para a construção de Brasília. Desprezando as regras do editorial, planejou uma cidade sem limites de crescimento, um conjunto linear que se desenvolveria nos entornos de uma extensa linha de metrô. Perdeu o concurso, mas ganhou aí, provavelmente, o seu inimigo do peito - não havia para ele melhor esporte do que espezinhar o Niemeyer, a quem chamava de "arquiteto oficial". Sobre Brasília, dizia ser "essencialmente um ato autoritário de JK para o seu amigo arquiteto". E questionava "a cidade feita por um homem só": por definição, afirmava, "uma cidade é pluralista e multiforme, e deve atender a objetivos variados e complexos". Polêmico, Guedes considerava a cidade de São Paulo "o fato urbano e arquitetônico mais importante do Brasil". Dizia-se "inebriado" pela Avenida Paulista e pelo complexo médico do Hospital das Clínicas. Foi lá que ele morreu. No extenso capítulo que se deve dedicar às cizânias que envolveram Joaquim Guedes, pode-se começar com uma anedota: um dia, ele acordou de manhã e lembrou-se de um velho amigo na Suécia. À tarde, tomou um avião e foi até lá. Brigou com o amigo e, missão cumprida, retornou no dia seguinte. Era um encrenqueiro profissional - gostava de pegar o interlocutor em seu ponto fraco. Tinha mania, por exemplo, de defender o Maluf. Se alguém o chamava de ladrão, Guedes se insurgia: "Ele nunca teve uma condenação, então não se pode dizer isso". E deitava falação. Embora seu argumento fosse justo, a insistente mania de advogar para o diabo, mal compreendida por muitos à sua volta, acabava sempre por arranhar velhas amizades. Esse estilo combativo e polêmico começou a perder a graça quando Guedes assumiu a administração da indústria de condutores elétricos Marsicano, de propriedade da família de sua primeira mulher, a também arquiteta Liliana Guedes - mãe de seus filhos e morta há dez anos. A gestão turbulenta da empresa acabou levando à destituição de Guedes, e por ordem judicial. A essa altura, o casamento com Liliana já tinha terminado - ela movia uma ação na Justiça contra ele, ele movia outra contra ela. Em 2001, a Marsicano entrou finalmente pelo cano, falindo depois de 80 anos de atividade. O Guedes, que tinha de certa forma se afastado da arquitetura, viu-se em dificuldade financeira. O dinheiro que ganhara como empresário fora investido em duas fazendas na região de Avaré, em São Paulo, onde criava cavalos árabes e plantava café. Vivendo apenas da aposentadoria de professor da USP, as terras tornaram-se improdutivas e as criações minguaram. O Guedes estava morrendo de medo do MST. "Foi para tentar se reerguer que o meu pai decidiu partir para a política da arquitetura", diz Alberto Marsicano Guedes, o Beto, que é jornalista e sócio do Bar Balcão, nos Jardins. No ano passado, Joaquim Guedes lançou-se candidato à presidência do diretório paulista do IAB, o Instituto de Arquitetos do Brasil. Evidentemente que uma campanha eleitoral não é algo que se prescreva a um encrenqueiro quase patológico. Mas ele foi em frente. "Às vezes ficava tão irado com as discussões, que as veias pulavam de sua careca", diz a diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, a amiga e companheira de chapa Nadia Somekh. Vitorioso nas urnas principalmente por causa dos votos do interior do Estado, tentou-se impedir que tomasse posse, sob alegação de irregularidades na composição de seu grupo. Guedes não teve dúvida: foi à Justiça e assumiu, no começo deste ano, o cargo que lhe era de direito. Não sem antes arrombar a sede do IAB, em um andar abaixo do escritório de Paulo Mendes da Rocha (também um desafeto), com polícia e pé-de-cabra. Em casa, os filhos tinham enorme dificuldade em lidar com o pai. Mal se falavam. Há poucos dias, Beto tinha proposto aos irmãos e também ao Guedes que tentassem fazer uma terapia familiar. Na semana anterior à morte do pai, todos tinham ido à primeira sessão. Joaquim Guedes tinha uma maneira particular de se (des)entender com a humanidade: brigava com amigos, colegas e parentes, mas era extremamente delicado e afetuoso com algumas pessoas, especialmente as mais simples. Seu office boy, o Jair, trabalhava com ele havia mais de 20 anos. Tratava-o como um filho. O porteiro, João, era volta e meia convidado a subir ao 11º andar. Joaquim gostava de almoçar com ele e aplicar-lhe uma música clássica. Às vezes, findo o expediente, tomavam um vinho assistindo a novela. Agora, amiga mesmo pra valer, tipo o reverso do Niemeyer, era a vizinha do terceiro andar. Chama-se Adriana Irigoyen, uma arquiteta argentina que conheceu Joaquim Guedes num congresso em 1987. Depois mudou-se com o marido para o Brasil e, por essas coisas do acaso, acabou comprando um apartamento no mesmo prédio onde ele morava. Antes de fechar o negócio, chamou o Guedes para ver o imóvel. Quando ele entrou, ficou surpreso: o apartamento era igualzinho ao seu - o forro do teto tinha sido retirado, deixando à mostra as vigas da construção; o nível do piso da sala fora aumentado, diminuindo o pé direito e fazendo a vista para o Jardim Europa parecer ainda mais generosa. Constrangida, a antiga proprietária confessou ter copiado o projeto de reforma do grande arquiteto - tinha enviado um espião ao 11º. Adriana gostava de provocar o Guedes: reclamava sempre da temperatura do vinho que ele servia. "Vinho tem de ser tomado em temperatura ambiente", decretava ele. "Isso lá em Paris", devolvia ela, "não no verão de São Paulo." O Guedes gostava. E reclamava do rock que ela de vez em quando escutava. "E você, que assiste novela?" Dessa forma a amizade dos dois se desenvolveu. Adriana sofre de fibromialgia, doença crônica que provoca fortes dores musculares e fadiga. O Guedes ficava inconformado com isso. Ele, que sempre andava na estica (mandava fazer suas camisas no Gerson Camiseiro, alfaiataria das mais tradicionais da cidade), certo dia apareceu na casa da Adriana vestindo bermuda, tênis e camiseta. Tinha descolado um livro com antigos exercícios chineses de alongamento. Pôs-se a demonstrá-los na sala, ensaiando os passos de uma estranha e ancestral lambaeróbica. Em momentos menos descontraídos, ele falava dos filhos e netos. Preocupava-se com eles. E seus olhos se enchiam de lágrimas quando tocava nesse assunto. No afã de refazer-se como arquiteto, Joaquim Guedes tinha acabado de fechar um importante compromisso de trabalho: a reforma da famosa Residência Kerti, um projeto de sua autoria que ficou conhecido também como a casa da Rua Grécia, onde viveu o ex-casal Eduardo e Marta Suplicy, em São Paulo. Por causa da situação financeira, Guedes tinha levado seu escritório para a sala do apartamento. Ali reina uma bagunça babélica: estantes de ferro abrigam uma coleção de livros amarelados, pilhas de jornais e revistas espalham-se por toda parte, dividindo espaço com envelopes, CDs, documentos, cartazes, cadeiras com o estofamento puído, quadros que esperam a hora de serem pendurados na parede. Ainda que fosse seu desejo pôr ordem nisso tudo, Guedes estava sem tempo. Licenciado do IAB, decidira lançar-se candidato a vereador pelo Partido Popular Socialista (PPS). "Sentia-se alijado das grandes discussões e muito aflito por não conseguir um canal para se expressar. Eu via nele um ímpeto de completar suas tarefas, uma noção de que estava perto do fim", diz Nadia Somekh. "Ele, que foi reconhecido quase que exclusivamente por suas casas, queria cuidar da cidade." Mas a cidade engoliu seu arquiteto quando aquela Pajero passou em cima dele. PATENTE Modernista de alto coturno, aluno de Artigas, foi autor de quase 500 projetos ?ARQUITETO OFICIAL? Não havia para ele melhor esporte do que espezinhar o Niemeyer PORTEIRO JOÃO Às vezes, findo o expediente, tomavam um vinho assistindo a novela

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