O vôo do caçador de patos

Livro mostra como Dick Cheney se tornou o mais poderoso vice-presidente da história americana

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Por Caio Blinder , jornalista e escritor
Atualização:

Após Richard Cheney, será difícil algum vice-presidente americano repetir a desoladora observação de John Nance Garner, o primeiro vice de Franklin Roosevelt, de que o cargo não vale um "balde de urina quente". Mas é preciso esperar que os sucessores de Cheney não esquentem a posição com tanta sofreguidão, artimanhas e abusos como esse companheiro de George W. Bush que, sem dúvida, é o mais poderoso e influente vice-presidente da história dos Estados Unidos. Barton Gellman escreveu também o melhor livro da história, até agora, de Cheney (Angler, The Penguin Press, US$ 27,95, 483 páginas). Jornalista investigativo do Washington Post, Gellman aprofundou as reportagens que escreveu ao lado de Jo Becker e renderam à dupla o Prêmio Pulitzer de 2008. "Angler" é o codinome no Serviço Secreto de Cheney, em referência ao seu hobbie de pescador, um raro lazer, além de ser um perigoso caçador de patos, em uma vida de trabalhador incansável, maquiavélico e soturno. Por extensão, o livro de Gellman - envolvente e infatigável - deprime. É sinal dos tempos. Na prateleira de obras sobre o governo Bush, já é a Grande Depressão. Lá estão títulos como The Dark Side (Janet Mayer) e The Terror Presidency (Jack Goldsmith), onde Gellman pescou informações. Cheney é um tipo sombrio e barra-pesada (e muito se orgulha de suas virtudes), mas Gellman não o trata como o monstro das caricaturas. Escreve inclusive que o vice "serviu ao país com devoção, com algum custo pessoal" (seus problemas de coração e o fato de ter deixado uma vida muito lucrativa na Halliburton para retornar a Washington). Um patriota, mesmo assim, um pavor. Veterano dos círculos do poder, Dick Cheney, de 67 anos, foi chefe da Casa Civil de Gerald Ford (o vice que assumiu com a renúncia de Richard Nixon no escândalo Watergate) e secretário de Defesa do primeiro presidente Bush. Com esse denso currículo, Cheney parecia sob medida para ser o mentor do noviço George W. Bush. Cheney nunca escondeu seus objetivos. O Executivo fora acuado com Watergate. Era preciso não só restaurar seu prestígio, mas ampliar seu poder. Mas, para que ele empreendesse a missão, as próprias atribuições da vice-presidência deveriam ser ampliadas, além da imaginação. Cheney começou cedo. E Gellman começa e muito bem o livro por aí. Escolhido por Bush para selecionar o vice do novo governo em 2001, Cheney e a filha Liz bolaram um questionário minucioso e humilhante para devassar a vida dos pretendentes, tratados como suspeitos. No final das contas, Cheney decidiu que ele mesmo era a melhor pessoa para o cargo, sem, é claro, preencher os formulários. Mas é simplista dizer que Cheney manipulava Bush. Como o presidente gosta de dizer, ele é o decider, mas não gosta de detalhes e sua marca é a preguiça intelectual. Bush deixou para Cheney o trabalho pesado, em particular o mais sujo. Nenhum problema para o devoto patriota. Com essa dinâmica na relação com Bush e a noção do poder sem limites, não é exagero afirmar que Cheney foi uma espécie de co-presidente, em particular no primeiro mandato. Ele se meteu em tudo, da guerra contra o terror à política tributária. Montou o cerco graças a uma rede de fiéis e implacáveis assessores como David Addington, seu chefe da Casa Civil, ex-assessor jurídico e entusiasmado seguidor da filosofia de Cheney de que, se o presidente faz, é legal (frase de Nixon). Não é à toa que um dos relatos mais fascinantes (e aterradores) do livro envolve a briga nos bastidores do governo sobre o grampeamento sem mandado judicial de cidadãos americanos. Começou como um projeto secreto do vice-presidente. As ordens de autorização e memorandos ficaram trancados no gabinete de Cheney e não na presidência. Questões sobre a legalidade do programa surgiram e explodiram quando funcionários do Departamento de Justiça se recusaram a acatá-lo. Cheney e Addington insistiram que eram suficientes os "poderes inerentes? de Bush como comandante-em-chefe para seguir adiante. Bush, alheio aos detalhes secretos e à gravidade da situação, primeiramente assinou a autorização sem o aval do Departamento de Justiça. Mas, quando o presidente soube que o ministro John Ashcroft, o diretor do FBI John Mueller e um punhado de altos funcionários governamentais estavam dispostos a pedir demissão, ele determinou mudanças aceitáveis no programa de grampeamento. De qualquer forma, houve um êxodo de gente do governo devido a essa controvérsia sobre grampos, tortura de suspeitos de terror e prerrogativas do Executivo. No segundo mandato de Bush, Cheney perdeu um pouco de sua elasticidade. Ironicamente, o vice que tanto fez para fortalecer a Casa Branca em relação aos outros poderes (em particular o Congresso) partirá em janeiro ao lado de um dos presidentes mais debilitados e desmoralizados da história. Será um bom tema de reflexões durante as pescarias.

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