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O vozeirão da pequena uigur

De Washington, Rebiya Kadeer faz um barulho que ecoa em Urumqi e estremece o governo chinês

Por Flavia Tavares
Atualização:

Enquanto na segunda-feira dois uigures eram mortos pela polícia chinesa em Urumqi, capital da Província de Xinjiang, em mais um episódio sangrento do conflito étnico que explodiu na região em 5 de julho e já deixou quase 200 mortos, a líder desse povo estava bem longe dali, mais precisamente em Washington, nos Estados Unidos. É lá que Rebiya Kadeer, apontada por Pequim como responsável pela incitação à revolta dessa minoria, mora desde 2005. Depois de seis anos de prisão na China, ela foi exilada a pedido do governo americano - que já tinha reclamado também o exílio do marido de Rebiya. Essa pequena senhora de 62 anos tenta convencer o país que a abriga a interferir ainda mais: visitou o Capitólio para pedir ajuda a democratas e republicanos, deu entrevistas a veículos do mundo inteiro, intimando os EUA a se manifestar mais veementemente, contestou acusações do governo chinês. Rebiya está distante da agitação, mas vive dias agitados.

 

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Indicada ao Prêmio Nobel da Paz em 2006, Rebiya se tornou o rosto da resistência uigur e é considerada por muitos a "dalai-lama" desse povo. Mas não é unanimidade, mesmo entre seus iguais. Ismail Amat, uigur que encabeçou o governo regional de Xinjiang de 1979 a 1985, chama a líder de "escória" e a acusa de ser separatista. Em entrevista concedida por e-mail ao Aliás - Rebiya não fala inglês e atende a imprensa internacional com a ajuda de assessores -, ela se defende. "Como os uigures são muçulmanos, a China se aproveitou do 11 de Setembro para nos tachar de terroristas e separatistas. É o governo chinês que aterroriza os uigures há 60 anos", argumenta. "E eu não sou separatista. Sou a favor da liberdade, dos direitos humanos e da democracia."

 

Se hoje Rebiya está sob os holofotes como uma líder rebelde, há alguns anos ela era uma figura proeminente no Partido Comunista chinês e chegou a ser deputada no Parlamento de Xinjiang. Nascida em uma família pobre, foi de lavadeira a empresária, chegando a ser a sétima pessoa mais rica da China, por conta de seus negócios em uma companhia de trading e uma loja de departamentos. Questionada sobre como tal trajetória foi possível num país comunista e com pouca mobilidade social, Rebiya não resiste à tentação de uma pequena autoexaltação: "Eu soube aproveitar as políticas de abertura do governo de Deng Xiaoping. Durante o comando de Mao Tsé-tung, claro, era impossível. Mas tive a coragem de fazer negócios quando todos tinham medo".

 

A fortuna de Rebiya está confiscada pelo governo chinês. Atualmente, ela vive de um salário mensal (não revelado) recebido da Fundação Internacional Uigur para Democracia e Direitos Humanos, instituição que fundou e dirige. Ela também preside o Congresso Mundial Uigur.

 

A convivência com os poderosos chineses era razão de um conflito domiciliar para Rebiya. Seu marido, Sidik Rouzi, sempre foi um opositor ferrenho ao Partido Comunista, motivo pelo qual passou nove anos na cadeia. "Decidi trabalhar de dentro do sistema político chinês por crer que isso beneficiaria os uigures. Mas falhei", admite, "porque o governo não tem interesse na paz, justiça e liberdade do meu povo". Quando Rouzi foi para o exílio nos EUA, a esposa lhe enviava recortes de jornais com notícias de Xinjiang. Foi o pretexto que o governo chinês precisava para também Rebiya também, sob a alegação de que ela mandava, na verdade, informações secretas sobre o país. Em 2000, a líder uigur foi condenada a oito anos de prisão por ter "transmitido segredos de Estado para o exterior". "A vida na prisão da China é um inferno para qualquer preso político uigur", lembra, acrescentando que existem cerca de 100 mil deles hoje na China. "Não fui fisicamente torturada, mas guardas torturavam jovens uigures até quase a morte na minha frente. E me insultavam dizendo: ‘Por que você não os salva?’ Eu não tinha permissão para ler, escrever, falar ou sorrir na prisão."

 

Solta antecipadamente em 2005, por bom comportamento e problemas de saúde que prefere não revelar, Rebiya foi ao encontro do marido nos EUA levando consigo 5 de seus 11 filhos. Outros cinco permaneceram na China: dois na cadeia e três em prisão domiciliar, numa represália da Justiça às atividades de seus pais. E uma filha vive na Austrália - onde, aliás, um filme sobre a vida de Rebiya será exibido no próximo mês num festival de cinema, apesar dos protestos do governo chinês. Ela garante que quem vive fora quer voltar. Mas não a Xinjiang. Ao Turquestão Ocidental, que é como se refere a sua terra natal.

 

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O conflito étnico entre hans e uigures em Xinjiang é fruto de uma política arriscada de Pequim, de dar incentivos para que hans se mudassem para a região a fim de diluir o poder da minoria uigur, uma das 55 da China, com 8,8 milhões de habitantes. Por outro lado, uigures desfrutam de algumas "regalias", como sistema de cotas em universidades e permissão para não seguir a determinação de um filho por casal. Para Pequim, os uigures deveriam ser gratos por essas vantagens. Para Rebiya, as generosidades são pura propaganda, já que os uigures não têm direito à expressão religiosa e à comunicação em sua língua.

 

Por telefone e e-mail, Rebiya está em constante contato com os uigures de Urumqi. Conta com o apoio das entidades internacionais de direitos humanos e com o forte apelo das imagens de um povo aparentemente pacífico sendo acuado pelo Exército chinês. Nega que tenha incitado a revolta, mas não se nega ao papel de verbalizar as demandas dos uigures - que, apesar de muçulmanos, dão espaço para lideranças femininas. Sobre as mortes dessa semana, Rebiya manda um recado: "É tão fácil para a polícia chinesa matar uigures e culpá-los pela onda de violência... Mas garanto a todos que nada abalará meus esforços pacíficos para ajudar meu povo e eu acredito que violência não seja a solução". De Washington para Pequim para Urumqi.

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