Obra de Paulo Pasta faz requintada revisão de pintura de Duccio

Embora o nome da tela seja 'Giotto', é outro mestre italiano que dialoga com o trabalho do artista

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Em sua exposição na Galeria Millan, aberta até dia 29, o pintor Paulo Pasta vence um desafio que, no passado, foi igualmente aceito pelo escultor inglês Anthony Caro (1924-2013), o de atualizar obras-primas dos velhos mestres como os fragmentos do grande retábulo de Duccio pintado para o altar-mor da catedral de Siena (concluído em 1311 e desmembrado em 1771), que se encontram hoje no acervo da National Gallery de Londres. No caso de Caro, a mesma National Gallery, em 1999, propôs a 24 artistas contemporâneos que reinterpretassem uma obra de sua coleção. O escultor escolheu as pinturas do altar Maestà.

Um fragmento da 'Maestà' de Duccio (à esquerda) serviu de inspiração para a tela 'Giotto', de Paulo Pasta, que resume a separação entre o Arcanjo e a Virgem pela coluna Foto:

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Sete séculos separavam Duccio de Anthony Caro quando o escultor inglês aceitou o convite da National Gallery, apresentando sete diferentes esculturas que retiravam as figuras santas do altar do pintor italiano, deixando à mostra apenas sua estrutura arquitetônica, não mais subordinada a uma construção espacial que privilegiava a presença humana nessas pinturas.

Não foi por mero capricho que Caro extraiu as figuras do arcanjo Gabriel e a Virgem Maria da Anunciação original de Duccio que fazia parte do altar-mor de Siena. Havia um motivo justo, segundo ele: a arquitetura, em Duccio, não tinha mais um papel passivo como cenário dessa Anunciação. Ela, de fato, moldava essa pintura, articulando, ainda segundo Caro, sua composição estrutural e espacial. Além disso, concluiu o escultor, a arquitetura era a linha mestra da narrativa.

Paulo Pasta, numa visita à National Gallery há dois anos, identificou igualmente na Anunciação de Duccio um bom pretexto para a discussão de um tema contemporâneo, o da planaridade na pintura. Ligada às fontes bizantinas, Duccio estava menos interessado no volume plástico das formas que Giotto, por exemplo. Duccio mudou a história da pintura também por sua visão cromática polifônica, como bem observou Argan. Mais que a pintura de Giotto, que buscava a harmonia, a de Duccio é rigorosamente cromática: o mestre de Siena reinventou o gótico com um refinado senso de cor e composição.

Apesar disso, a tela de Duccio reproduzida acima, ao lado da pintura mais recente de Pasta, que pode ser vista na Millan, chama-se Giotto. Tem uma explicação: como pré-renascentista, Giotto carregou sua pintura de um sentido humanista, elevando o homem à condição de santo. Ao retirar as figuras do Duccio original, Paulo Pasta oferece em sua reinterpretação uma epifânica vibração cromática que sugere o halo das figuras santas de Giotto, que promove o homem comum ao espaço sagrado. Pasta identifica-se com essa visão humanista de Giotto, mas leva em conta as razões que conduziram Duccio a separar a Virgem Maria do arcanjo Gabriel, sugerindo uma distância abissal entre ela e o mundo real. Separação, evoque-se, determinada por uma coluna, elemento onipresente na pintura de Pasta.

Se, antes, Pasta pintava o espaço entre as coisas, numa alusão à pintura dos metafísicos italianos, hoje ele aprofunda a relação entre forma e cor ao introduzir uma linha diagonal (compare o lado esquerdo superior de sua tela Giotto com o da Anunciação de Duccio) que afeta nossa percepção visual, fazendo-nos descobrir que espaço interno (o da casa da Virgem) e externo (o terreno, do homens) se equivalem. Tudo é sagrado.

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