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Obra-prima de Leonid Dobytchin, proscrito pelo regime soviético, 'A Cidade Ene' ganha tradução

Autor foi considerado pelo prêmio Nobel Joseph Brodsky como o maior escritor russo pós-revolução

Por Aurora Bernardini
Atualização:

Já conhecido no Brasil pelo inovador Encontros com Liz (Kalinka, 2020), que reunia alguns dos contos escritos entre 1923 e 1931 como ‘snapshots’ do novo mundo soviético que se chocavam com os velhos símbolos de uma Rússia czarista, numa linguagem concisa e irônica que ia do real ao grotesco, comparada por isso com a de Isaac Babel e Nabokov, Leonid Dobytchin (1894-1936), considerado pelo prêmio Nobel Joseph Brodsky como o maior escritor russo pós-revolução, aparece agora, em tradução fiel, acurada e provida de notas, com o romance A Cidade Ene, aclamado há tempos no mundo inteiro como sua obra-prima.

Vista da cidade de Dvinsk, na Letônia, onde viveu Leonid Dobytchin, autor de'A Cidade Ene' Foto: Anatoly Vyalikh

Trata-se do encantador relato de um jovem narrador (dos 6 aos 15 anos de idade) que abarca o período de 1901 a 1911 da vida do autor, que vai revivendo sua infância e adolescência em Dvinsk, uma cidadezinha no norte da Rússia, hoje pertencente à Letônia. O título é uma referência direta à cidade N de Almas Mortas de Gogol, para onde se dirige o viajante comprador Tchítchikov, cidade essa repetidamente idealizada e embelezada pela fértil imaginação do jovem leitor e sua leitura preferida enquanto criança, paulatinamente substituída, à medida que ia crescendo, pelas obras de autores como Dumas, Tolstoi, Chekhov, Dostoievski, Dickens e Maupassant, que farão parte da plêiade dos mestres inspiradores do narrador, sempre lidas cum grano salis. Se nos contos sentia-se a contradição entre o regime soviético e a vida provinciana e mística pré-revolução, em A Cidade Ene não há, nem poderia haver, nenhuma confrontação ética, nem, tanto menos, ideológica. Como lembra acertadamente o prefácio, há apenas o espaço microscópico do texto onde o olhar penetrante do adolescente vai fixando eventos de sua vida real em frases curtas e percucientes que são reparos, impressões, anseios, pensamentos, mas também história, que a memória vai progressivamente revivendo e encadeando num tecido colorido, vivo e vibrante. Os eventos do texto são apanhados com a precisão e a originalidade próprias ao mundo infantojuvenil, assim como os personagens que lhe dão vida, criando transições e encaixes onde a crueza limita com o insólito e, por vezes, com o hilariante. Veja-se, por exemplo, como o narrador começa a falar do acontecimento da morte do pai médico, ocorrida na vida real, quando Leonid contava apenas oito anos de idade: “Nesse outono o pai apanhou uma infecção em uma autópsia e morreu. Até levarem o corpo à igreja nossa porta principal ficou aberta e qualquer um podia entrar. Os moradores do porão apareceram inúmeras vezes. Em vez de expulsá-los, a cozinheira e a babá iam correndo a seu encontro e, rodeadas por eles, passavam-lhes diversas informações a nosso respeito. A missa de réquiem estava apinhada, e uma senhora amável que tinha vindo de Vitebsk especialmente para o enterro, ergueu com a mão a cauda do vestido, levou-me para um canto e ficou comigo perto do crucifixo.” Ou então, como ele trata do assassinato do filho do czar Alexandre II, em 1905: “Gotejava dos telhados quando fazia sol e a escola passou a me aborrecer mais e mais. Eu fiquei muito contente quando, numa manhã ensolarada, Golovniov, com uma expressão significativa, informou perto dos cabideiros que um príncipe tal tinha sido morto e que às doze horas iríamos à missa de réquiem e de lá para casa. Ele gostava muito de anunciar o inesperado.” Quanto aos personagens, além da crueldade visível no comportamento de certos pais ( “Quando açoitam os soldados, ele está sempre presente – disse Andrei, do pai”), do atiramento de moças e meninas (“Bliuma esmoreceu. Agarrando minha mão, ela se calou e deixou-se tombar sobre meu flanco. Fui obrigado a me afastar”), etc., é constante, no livro, a procura de um amigo dileto por parte do narrador que sente, premente, a necessidade de diálogo com algum coetâneo. Finalmente encontra-o em Serge, um colega da escola, até que este que se muda com a família. Em vão procura substituí-lo por Vássia, Andrei (--Estar com Andrei—dizia eu cá comigo, ao voltar – é agradável, mas de alguma maneira não há nada de poético nele. E Erchóv me veio à lembrança), e essa sua procura o acompanha até o fim do livro, quando, já vestibulando, passa nos exames de ingresso para um instituto do ensino superior e faz uma descoberta que lembra a do Miguilim de nosso Guimarães Rosa: -- Alto lá --, disse eu, pasmo. Tirei o pincenê do nariz de Péissakh e o levei ao meu (...) À noite, quando escureceu, vi que existia uma quantidade imensa de estrelas e que elas emitiam luz. E comecei a pensar que tudo o que até agora tinha visto, eu tinha visto incorretamente. Eu tinha interesse em ver Natalie e em saber como ela era. Nesse ano ela estava passando o verão em Odessa. A publicação do livro, seu único romance, coincide com o fim da vida do autor. Apesar de profeticamente, nas falas de uma babá, haver antecipado um dos slogans da revolução ( -- Lá --, disse Cecília com devoção e olhou para o alto – as babás e as cozinheiras serão soberanas, e os senhores irão servi-las ...), em 25 de março de 1936 A Cidade Ene foi acusado pela União dos Escritores de Leningrado, de formalista, esteticista, e profundamente hostil ao poder soviético. Na manhã de 28 de março, profundamente magoado, Leonid Dobytchin entregou as chaves do seu apartamento a um amigo e desapareceu para sempre.*AURORA BERNARDINI É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA RUSSA DA USP

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