Olho de rato no olho do furacão

Roedores de antigos regimes se alçaram dos porões dos navios ao tombadilho e assumiram o comando da nave

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Por Francisco Foot Hardman
Atualização:

Poderíamos apostar no silêncio. Há muitos movimentos na história que nasceram assim, na resistência subterrânea à mordaça da censura, ao exercício monopolista da violência do Estado sobre a "vida nua", na aglutinação molecular das forças dispersas, às vezes clandestinas, dos excluídos, dos sem-poder. Inclusive no Brasil.

 

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Não seria, porém, o silêncio do esquecimento fundado na pax romana, que reitera as engrenagens do mandonismo. Seria o silêncio da recusa. Da grande recusa ao círculo infernal de palavras contaminadas pelo empenho primário em mentir, em intimidar, em desfazer os fios incontornáveis da memória dos nomes, das imagens, dos fatos.

 

Mas, por que, andando pelas ruas – perdoem-me, Senhores Senadores, mas as ruas existem, e continuam cheias de vida, de vozes, de mentes e corações desesperançados, porém enérgicos – aflora, crescente, esse misto de medo e nojo? Permitam-me uma digressão em torno do excelente filme de Júlio Bressane, ainda em cartaz, A Erva do Rato, de filiação claramente machadiana. O olho do rato redivivo, prestes a mais uma predação, nos enoja e amedronta, não tanto por seu iminente e previsível ataque parasitário, mas, antes, pelas condições que retroalimentam sua rápida e generalizada reprodução. Reprodução sem controle, sem abalo. De tal maneira que, em algum momento, imperceptível, ele se alojou no corpo da Musa, ele se imiscuiu em Eros, ele corrompeu a Vida. Incorporou-se, desfazendo os limites do que mais temíamos. Tornou-se o Mal invisível e, por isso, com maior poder corrosivo ainda.

 

 

Em nossas sempre recorrentes transições transadas, os ratos de antigos regimes permaneceram firmes e fortes nos porões dos navios. E logo se alçaram ao tombadilho, e muitos chegaram ao convés e assumiram, celerados, o comando da nave louca. E reproduziram interminavelmente sua espécie nos labirintos do Estado, do patrimonialismo e das oligarquias high tech. Como vampiros ciosos de sua imortalidade, misturaram-se aos corpos dos vivos. Fizeram escola à custa da ignorância do povo, que mantiveram e mantêm iletrado e miserável. E, no tumulto dos tempos, aceitamos as regras dessa inoculação perversa, consumimos os restos intermináveis do que se chamou "entulho autoritário", sempre adiando sua completa extirpação, em nome da governabilidade, dos bons costumes e da "necessária" aliança dos contrários.

 

Do Senado dos biônicos impostos pela ditadura militar, chegamos ao Senado dos suplentes e dos suplentes de suplentes de zero voto. Dos dois partidos autoritários porque consentidos pelo regime de 1964, chegamos à falência total da representação política, numa multiplicação de siglas de aluguel, fisiológicas, satelitizadas por novas oligarquias de duas ou três legendas, grandes aparelhos de cooptação aos mecanismos financistas-burocráticos do Estado. O PMDB, "partido-ônibus" na expressão, entre outros, de FHC em análise dos tempos do Cebrap, que talvez se convertesse em grande "partido dos assalariados", deu no que deu, no grande papa-fila dos senhores localistas da caça à raposa do erário. O PSDB logo descarrilou de sua tênue veleidade social-democrata para abraçar com entusiasmo a ordem neoliberal. A Arena virou PDS que virou DEM: sem comentários. E o PT? Desde 2003, converteu-se em novo partido da ordem, cometa poderoso que se descolou por completo de suas origens, arrastando em sua cauda siglas, como por exemplo o PTB, legenda que, sob a máscara do símbolo getulista passado, tornou-se no presente em um dos melhores emblemas da política sob o signo do mercado.

 

A verdadeira paixão maníaca do PT pelo PMDB – nem em sombra a imagem perdida do "autêntico", mas sim a da máquina oligárquico-fisiológica mais potente do conservadorismo, fundada em estratégia supostamente "realista e inteligente" que deve seus créditos ao Comissário-Consultor Dirceu –, coloca-se agora sob o risco real de completa e humilhante desfiguração ideológica de sua bancada de senadores. A tibieza, omissão e "murismo" digno do antigo folclore tucano tornaram-se moedas correntes entre os senadores petistas, a começar de sua liderança desmoralizada. Suposta força hegemônica da "aliança do século" com o peemedebismo, o Fiador maior do Literato posa de rei, mas é só valete. Sugere ser o Mestre da política como "nunca antes neste país", mas resta Vassalo. Fiel da balança da vigarice institucionalizada na Comissão de Ética, o PT silencia diante do descalabro e prepara-se para recolher os escombros de sua autocorrosão como partido da mudança. Tornou-se o partido do temor à esperança e do eterno adiamento. Perdeu a inventividade de um tempo heroico, hoje mais que pretérito. Tornou-se graxa de engrenagem decrépita, mas letal. Dilma Roussef, sua pré-candidata presidencial, colherá, certamente em futuro próximo, os frutos dessa cegueira temerária de próceres e arrivistas imersos no sonho maquiavelista do "tudo pelo poder, sempre".

 

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A história dirá. Quando, mais adiante, perscrutarem-se os corredores palacianos, ver-se-á, talvez como Euclides da Cunha, numa passagem de 1904, já inteiramente desiludido com os destinos da República, num quadro assemelhado a uma "espécie de Encilhamento da Miséria", "em cada caracol das escadas que levam aos gabinetes dos ministros (e dos senadores, por suposto!) uma espiral de Dante".

 

Não se trata aqui de mero inferno astral. Antitropicalista, a imagem que fica, para nós, mortais comuns sem biografismos, é a daquele olho de rato na noite imensa do autocratismo brasileiro, cujo brilho assombrador já não se acha, porque o olho, o corpo e a alma ratoneiras estão agora incrustados, como tatuagem ou feto, em nossa pele, em nossa carne.

 

E a sede de justiça desanda em vida seca. E o ideal de beleza soçobra na feiúra do abutre. E a busca da moral colapsa no abuso da mentira. Mas o direito à verdade, dos perseguidos da ditadura de ontem aos eleitores nascentes de hoje, continuará seu parto, mesmo que momentaneamente silenciado.

 

*Professor titular do Programa de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp

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