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Ópera 'Orlando', de Olga Neuwirth, fez história, mas nada além disso

Primeira obra de uma compositora a ser apresentada pela companhia derrapa ao adaptar Virginia Woolf

Por Joshua Barone
Atualização:

VIENA - O Orlando de Olga Neuwirth fez história mesmo antes de sua estreia mundial na Ópera de Viena, neste domingo: seria o primeiro trabalho de uma compositora a ser executado por essa famosa companhia.

Transgênero. Justin Vivian Bond (de preto) é Orlando Foto: THE NEW YORK TIMES

Mas por que parar aí? Com carta branca para quebrar os limites, Neuwirth deu o máximo. Sua diretora, Polly Graham, e a colaboradora do libreto, Catherine Filloux, são mulheres – assim como Rei Kawakubo, a titã da alta costura da Commes des Garçons, que desenhou os figurinos. Entre as estrelas está a artista queer Justin Vivian Bond, que trocou o Joe's Pub de Manhattan por um dos maiores palcos da Europa. A inspiração de Neuwirth é Orlando, de Virginia Woolf, uma biografia fictícia e bem engraçada que mistura os gêneros (nos dois sentidos). O romance termina no dia de sua publicação, em 1928, mas Neuwirth segue até o presente, contando em três horas séculos da história de vida de um poeta, um homem da Inglaterra elisabetana que da noite para o dia se torna mulher e nunca parece envelhecer. Um escopo tão amplo assim pode ser demais para uma ópera. Então, ainda que haja muito a se comemorar com o marco da estreia de Orlando, também há muito a se lamentar: uma aparente falta de auto-edição, uma integração deselegante entre música e texto, uma franqueza panfletária que transforma as cenas finais em mera ladainha sobre causas liberais. É, no entanto, um triunfo da escrita orquestral. Conduzida por Matthias Pintscher, com pleno domínio sobre o caos organizado de Neuwirth, a trilha é uma vasta e irônica analogia ao romance de Woolf, uma jornada pelos séculos com referências tão fugazes que você raramente consegue identificá-las com total confiança. Uma sugestão da ‘Sagração da Primavera’ de Stravinsky vem e vai feito um chicote. Em entrevistas e no programa da ópera, Neuwirth descreveu que seu objetivo era criar uma espécie de androginia sonora. Ela apaga a linha entre o que é acústico e digital, o que está no palco e fora dele. Os segundos violinos são afinados em um tom abaixo dos primeiros, o que provoca certo incômodo. O coro que canta de uma tribuna acima do lustre do auditório cria uma dissonância cognitiva com aquele que canta, ao mesmo tempo, no palco. Como nas óperas anteriores de Neuwirth – entre elas, uma adaptação de Estrada Perdida, de David Lynch – a trilha exige uma substancial biblioteca de referências; a parte eletrônica e o design de som são assinados por Neuwirth, Markus Noisternig, Gilbert Nouno e Clément Cornuau. O saco de pancadas que aparece no palco na primeira cena é equipado com microfones e, quando o jovem Orlando bate nele com um bastão, os ruídos são incorporados à música. Mas, apesar de toda a engenhosidade, Neuwirth trata a escrita vocal como uma reflexão tardia. Tem um pouco de humor – a soprano Constance Hauman, no papel de rainha Elizabeth, e outros dois personagens às vezes se apresentam com uma paródia da voz operística – mas muitos no elenco não recebem o suficiente para causar alguma impressão. Kate Lindsey, uma intensa meio-soprano, canta o jovem Orlando em um registro desconfortavelmente baixo, que sobe depois de sua transformação em mulher. Para um espetáculo sobre androginia, parece um equívoco. Quando vemos Lindsey pela primeira vez, Orlando está de calções e é trazido ao palco pelo Narrador, papel da cantora italiana Anna Clementi, que atua como um duplo de Orlando, escrevendo sua história em tempo real, enquanto o texto da biografia é projetado sobre painéis ao fundo. (Os vídeos hiper-realistas são de Will Duke.) A ópera fica bem próxima ao romance durante o primeiro ato. O jovem se torna o favorito da rainha Elizabeth; experimenta um desgosto na Grande Geada de 1608; e escreve poesia, na esperança de compartilhá-la com uma celebridade do meio, Nicholas Greene (o barítono Leigh Melrose, com balanços vocais que lembram Eddy em Estrada Perdida). Vigiando tudo isso está o Anjo da Guarda, Eric Jurenas, cuja voz contratenor suave e encorpada foi um destaque. Orlando se torna embaixador em terras estrangeiras, onde um dia acorda como mulher – de vestido verde e rosa e colar de flores – e passa a viver a vida efetivamente de segunda classe que vem junto com seu novo gênero. No final do primeiro ato, em um movimento que afasta a ópera do romance e dá início à sua militância gritante, ela fala dos abusos sexuais contra crianças na Grã-Bretanha da era vitoriana e promete reescrever a história das mulheres. É uma promessa robusta para o segundo ato, e Neuwirth nunca chega a cumpri-la. Conhecemos Shelmerdine, o futuro marido de Orlando (Melrose, novamente), com quem compartilha os cabelos ondulados, os traços angulares e, por fim, o filho, interpretado por Bond. Então, o enredo acelera até o século 20, com uma longa montagem que mostra um mundo onde as espadas foram substituídas por bombas atômicas e as amarras de identidade foram derrubadas como o Muro de Berlim. A ação se detém durante a Segunda Guerra Mundial, quando Orlando fica sozinha no palco vazio, enquanto os nomes das vítimas do Holocausto são projetados sobre as cortinas; a trilha apresenta uma gravação de 1928 de um movimento do concerto para violino de Bach, tocado por Arnold Rosé e sua filha Alma, que morreram no campo de concentração de Birkenau, em 1944. Um alarde vai subindo lentamente entre a música rascante, e então o palco é tomado por uma explosão sônica – tão poderosa que sacode os assentos do teatro. À medida que a poeira vai baixando, por assim dizer, as telas no palco mostram a Ópera de Viena bombardeada na guerra. No entanto, não há tempo para lamentar: o tempo continua correndo para o presente, passando dos brilhantes e modernos anos 1960 ao final dos anos 80, quando uma editora diz a Orlando que “romper a barreira do gênero” seria desastroso para sua carreira de escritora. Por toda parte aparecem citações de letras de músicas pop, como Born This Way, de Lady Gaga, e a divertida Coming, que encerra a adaptação cinematográfica que Sally Potter fez para Orlando, em 1992. Quando o filho de Orlando entra em cena (visivelmente sofrendo com um papel que não está à altura do talento de Bond), a política da ópera fica cada vez mais cáustica e até mesmo juvenil. Bond denuncia o patriarcado; Orlando se assusta com a ascensão do nacionalismo, enquanto a voz do presidente Donald Trump é distorcida até ficar quase irreconhecível; e um coro de crianças alerta: “Nosso planeta está em perigo!”. Esses momentos, que perdem de vista a história de Orlando e carregam toda a sutileza de cartazes de protestos, ficam cansativos à medida que as horas passam. Em seguida, o enredo chega ao dia da apresentação. No romance de Woolf, o presente é uma “revelação aterradora”. Mas, no domingo, era apenas um sinal de que a ópera estava terminando – finalmente. / Tradução de Renato Prelorentzou

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