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Os bêbados e os equilibristas

Alagamentos desgovernados desnudam a miopia do poder público no planejamento e ocupação do solo em SP

Por José de Souza Martins
Atualização:

Isolar o problema das enchentes, dos escorregamentos, dos desmoronamentos e das decorrentes tragédias de outras anomalias da vida urbana ajuda a compreender o detalhe, mas não ajuda a compreender o complexo de causas e consequências que vem tornando a cidade o lugar por excelência de um modo de vida emergencial e antiurbano. Nesse sentido, para a vida urbana o desastre dos alagamentos e dos problemas sociais consequentes não é diferente do cotidiano desastre dos congestionamentos do trânsito e dos transtornos que dele decorrem. Ambos contribuem para a constante necessidade de colocar a vida entre parênteses. É nessa repetida constância que se pode vislumbrar a omissão do poder público, durante décadas, em relação ao planejamento urbano e a uma política de ocupação do solo.

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Refiro-me a ocorrências que interrompem e inviabilizam o curso normal da vida de todo dia, alterando a economia cotidiana de gestos e movimentos de que a população depende. O que se agrava, no caso das chuvas e inundações, com as mortes evitáveis, como as de quatro irmãos de uma mesma família, três deles crianças, vitimados pelo desmoronamento de sua casa, em Santana do Parnaíba. E também o desalojamento de numerosas pessoas, sempre dramático, sobretudo de doentes, idosos e crianças, recolhidas por períodos longos a instalações impróprias. Como o que se viu nestes dias com as dezenas de famílias da zona leste abrigadas na desativada escola Heraldo Barbuy, suja, sem água nem instalações sanitárias suficientes e apropriadas. Tudo improvisado, como se esses desastres cíclicos e reiterados não fossem previsíveis e medidas de manutenção dos equipamentos de socorro não fossem necessárias.

A interrupção da vida cotidiana das populações de sociedades complexas, como a nossa metrópole, que ocorre nesses surtos de anomalias, sejam ambientais ou não, tem efeitos multiplicadores desastrosos até mesmo em âmbitos não visíveis da vida social, como a desorganização da vida doméstica, a descontinuidade na vida escolar de crianças e adolescentes, a disseminação da incerteza, grave no caso dos imaturos, quanto ao destino, à segurança, à inserção estável e previsível na sociedade de pertencimento. Essas rupturas dramáticas e trágicas na vida cotidiana situam-se na lógica dos retrocessos sociais e substituem as certezas sociologicamente necessárias ao curso da vida social pelas improvisações de curto e provisório alcance. Sem contar os lutos demorados, que vão além da família, cuja extensão anula sua função social de ritualizar e superar a tragédia das separações definitivas. A disseminação espacial das ocorrências, e suas reiterações, seguidas de improvisações que ficam muito aquém do necessário, vão corroendo os arranjos sociais cotidianos que nos permitem viver sem medo. Já não vivemos para nós, e sim para os problemas que nos afligem.

Incluo a questão do tráfego diariamente congestionado, pois nessas dificuldades a sociedade se inverte, converte-se no seu avesso, inviabiliza-se, mata expectativas, destrói referências sociais de conduta, relega parcelas ponderáveis da população às improvisações das chamadas estratégias de sobrevivência. Se essas estratégias nos apontam uma criatividade social que ameniza os efeitos das rupturas mencionadas, são também forte indício de um imenso vácuo de valores e orientações necessários ao fluir da nossa sociabilidade do dia a dia. Na inutilidade do semáforo anulado pelo caos, surge improvisadamente em seu lugar o semáforo imaginário das sinalizações indiretas de buzinas, ousadias perigosas, avanços imprudentes, reconvenção provisória do trânsito, ressocialização para a direção perigosa, mesmo quando já não tem cabimento. Eu não me espantaria se se descobrissem correlações positivas entre o crescimento da prática da direção perigosa e da regra improvisada, fora de períodos de turbulência, e a frequência na sucessão de enchentes e congestionamentos, que pedem a improvisação a motoristas e pedestres. Sem contar, no capítulo dos desalojamentos provocados por inundações, os efeitos dessocializadores na vida dos imaturos, em particular na desvalorização da escola e da disciplina escolar, mesmo para aqueles que não são vitimados pelos desastres naturais, mas cujas escolas são transformadas em abrigos para os que o são. Ambas as modalidades de ocorrência desastrosa nos põem diante de um cenário de conduta anômica que já entrou nos hábitos da população, um recuo na civilidade.

Vários fatores têm concorrido para mudanças problemáticas e profundas na organização espacial e social da metrópole nos últimos 50 anos. Não só decorrentes dos efeitos do crescimento populacional anômalo, com as migrações, mas também por sua conexão com o insuficiente desenvolvimento da infraestrutura urbana, especialmente o transporte de massa. Uma das consequências foi o surgimento de uma espacialidade de confinamento, a metrópole desarticulada de um centro, que em todas as partes é o lugar monumental de referência ordenadora do urbano, é o que lhe dá sentido. O poder público acabou se ajustando à desorganização que se materializa na arquitetura crua de favela e no urbanismo em que mal se ocultam os interesses do especulador imobiliário. Em tudo uma insuficiência que se agrava nos episódios de catástrofes, como as enchentes, e nos episódios de bloqueios da circulação, como o do trânsito congestionado. Uma nova linha de metrô, a extensão de outra e o aumento do número das composições, também as ferroviárias, já no próximo ano, devem atenuar as adversidades decorrentes dos longos congestionamentos nas ruas de São Paulo e melhorar a vida de todos. Porém, fica a herança dos terrenos ocupados indevidamente, carentes das obras prévias de infraestrutura, que não foram feitas, não raro terrenos invadidos, construções até mesmo em cima dos córregos de vazão das águas pluviais. Tudo dependente de uma reforma fundiária urbana e uma verdadeira política urbana, que este país não tem.

*Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de

A Sociedade Vista do Abismo

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