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Os caminhos e descaminhos da liberdade

A narrativa do livro do argentino Pablo Katchadjian confunde-se com uma peça de teatro

Por Dirce Waltrick do Amarante
Atualização:

A Liberdade Total, de Pablo Katchadjian, festejado autor argentino, foi publicado pela primeira vez em sua terra natal em 2013. Traduzido para o português por Bruno Cobalchini Mattos, o livro saiu no Brasil em versão digital em 2018, mas ganha agora versão impressa.

A narrativa do livro se desenvolve em forma de diálogo, à moda dos textos de Dennis Diderot. Confunde-se assim facilmente com uma peça de teatro, mais especificamente do teatro pós-dramático, ainda que não tenha um gênero específico no qual se possa encaixar. O texto, sem nenhuma rubrica, lembra também Esperando Godot, de Samuel Beckett, mas às avessas, ainda que a busca das personagens seja a mesma: se, na peça de Beckett, ninguém sai do lugar à espera da chegada de um possível salvador, na dramaturgia de Katchadjian, as personagens, denominadas genericamente A, B, C, D..., não param de se mover, pois estão sempre à procura de uma saída que as salvará. 

Graffiti de Banksy:uma alegoria lírica da liberdade Foto: Banksy

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Não é fácil encontrar uma saída, aliás, uma saída para quê? Para a liberdade que elas sabem não existir? A liberdade, elas acreditam, “é uma porta de entrada que está sempre trancada”, e quem tem a chave definitivamente não são elas.

No início, as personagens parecem querer fugir de uma escola que as obriga a pensar. Diz C, uma espécie de mestre: “Agora quero que pensem nesta frase: ‘Os filhos tendem a se parecer com os pais, sejam estes humanos, animais ou plantas”. Mas os “alunos” não se interessam pelo assunto. Talvez o ideal seja não pensar, não refletir; assim, conseguem sobreviver ao ambiente hostil em que vivem.  Como parece ser impossível não pensar, as reflexões retornam, porém, elas tomam o cuidado para não as desenvolver: “A: O desconhecido é o nada? Hahaha. Esse é o pensamento racionalista mais besta que escutei na minha vida: se você não conhece, não existe. B: Bem, pode ser besta, mas ao mesmo tempo não é nada besta: só existe aquilo que conhecemos; à medida que vamos conhecendo, vamos fazendo as coisas aparecerem. A: É um argumento muito antigo e chato, não tenho vontade de discutir”.

Na fuga rumo à alienação (um tipo de liberdade paradoxal), as personagens se perdem em um labirinto de corredores insólitos, o que as aproximaria, a meu ver, de K, personagem de O Processo, de Franz Kafka, o qual atravessa os corredores escuros de uma repartição pública tentando se defender de algo de que não sabe. As personagens de Katchadjian estão tão perdidas quanto K. Uma delas diz: “Nós chegamos aqui juntos. Nos aconteceu algo ao mesmo tempo, quando estávamos juntos, mas tampouco sabemos o que foi”. 

No espaço em que se movimentam há rastros de torturas, elas pisam talvez em cadáveres (imundos e gosmentos). Seriam os mortos da ditadura argentina, das ditaduras instaladas na América do Sul no século passado? Seria esse território, do qual tentam escapar, o retrato da América do Sul?

Vale lembrar que, quando Katchadjian publicou pela primeira vez seu livro, a Argentina era presidida por Cristina Kirchner; o vizinho Chile, por Michelle Bachelet; já, no Uruguai, o presidente era José Mujica e, para não me estender muito, no Brasil, Dilma Rousseff. Elencar os nomes desses presidentes parece apenas um detalhe; mas, se é verdade que o artista está pelo menos um passo além de seu tempo, o livro de Katchadjian parecia prever a guinada de extrema-direita dada pela América do Sul em poucos anos: “É um panorama bastante sombrio”, diz uma das personagens em resposta à outra. 

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Esse panorama sombrio e sem saída seria uma espécie de retrato “eterno” da América do Sul (ou da América Latina). Andamos, como as personagens do livro, sempre em busca de uma saída, mas a porta “está sempre trancada”; ainda que se abrisse, “do outro lado não só não há nada, como também há um cheiro muito desagradável, dá vontade de vomitar”. Hoje, para a Argentina, talvez esse cheiro desagradável venha dos vizinhos Brasil, Chile, Uruguai.

Em setembro de 2018, quando o livro chegou ao Brasil em versão digital, ainda havia a expectativa do segundo turno entre Haddad e Bolsonaro por aqui. A porta de saída não estava totalmente cerrada, mas, quando A Liberdade Total volta a circular por aqui em versão impressa, diria que nos resta a certeza de que estarmos tão aturdidos quanto as personagens de Katchadjian.

DIRCE WALTRICK DO AMARANTE É PROFESSORA DE ARTES CÊNICAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA (UFSC)

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