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Luzes da cidade

Os desafios de gênero na infância

Em uma escola do Brooklyn, em Nova York, o psicólogo belga Jean Malpas e a diretora de ensino Rebecca Fagin mostram como é possível preparar uma instituição para receber uma criança em fase de “transição de gênero” e criar um ambiente de aceitação e proteção

Por Lúcia Guimarães
Atualização:
  Foto: Werther | ESTADÃO CONTEÚDO

Lúcia Guimarães

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De Nova York

Na rua arborizada do Brooklyn, o final do verão nova-iorquino era anunciado, não pela temperatura, mas pelo ruído de crianças de volta às aulas. A escola centenária estava tinindo de limpa, a cozinha do refeitório emanando aromas do primeiro almoço. O ritual de setembro no maior sistema municipal de escolas públicas do país, com 1,1 milhão de estudantes, não é diferente do de qualquer outro. Há a excitação de reencontros e a inevitável pergunta, o que você fez no verão?

No caso da PS 29 (Escola Pública 29), a pergunta, para uma criança da quinta série, ia ter significado especial. Por isso, a sua chegada foi marcada para o segundo dia de aula. No primeiro dia, professores, psicólogos e outros funcionários previamente treinados explicaram o motivo aos estudantes das turmas de quinta série: a criança de quase dez anos, que tinha partido de férias como menina, estava voltando como menino, seu nome levemente alterado para refletir o gênero que escolhera.

Por trás da acolhida tranquila recebida pela criança, está, além da diretora da escola, Rebecca Fagin, um terapeuta pioneiro, o psicólogo belga Jean Malpas. Ele fundou o Projeto Ackerman para Gênero e Família em 2010, parte do Instituto Ackerman para a Família, uma das mais prestigiadas instituições de psicoterapia de Nova York.

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Pouco depois de chegar à cidade, no começo da década passada, Malpas estava trabalhando com jovens num centro de atendimento à comunidade LGBT. Recebia famílias com jovens transgêneros e, em seguida, abriu o consultório próprio. “Foi quando começaram a me indicar famílias com filhos cada vez mais novos, de 11, 9, até 4 anos,” conta o psicólogo, que falou ao Estado na sede do Instituto. Quase não havia literatura na psicologia para crianças com fluidez de gênero – este é o termo correto, uma vez que uma criança não troca biologicamente de sexo e ainda tem um longo caminho pela frente na busca de sua identidade. As famílias não tinham suporte algum e Malpas resolveu apresentá-las umas as outras. “Marquei uma sessão com adultos de três famílias numa noite de sexta-feira. Choramos durante umas duas horas, ele lembra,” sorrindo. As referências começaram a chover e Malpas entendeu que precisava de apoio institucional.

Hoje, entre 150 e 200 famílias frequentam o projeto de Malpas. Na tarde em que conversamos, ele chegou atrasado, vindo de uma reunião para combinar a montagem de um carro alegórico na gigantesca parada gay “Orgulho NYC” que deve levar quase 2 milhões às ruas, no próximo dia 26. Muitas famílias que Malpas atende participam da parada, sob o lema “Orgulho para as crianças também”.

Não há estatísticas confiáveis sobre o número de adultos transgêneros nos Estados Unidos. Quanto aos casos de identidade sexual infantil em fluxo, as estatísticas são ainda menos conhecidas. Com base em quinze anos de clínica e estudos, Jean Malpas estima que metade das crianças que expressam inconformismo com o sexo designado na infância pode se tornar homossexual na idade adulta. Um quarto poderá, de fato, trocar de sexo e os restantes seguirão heterossexuais.

“Quando o desconforto com sexo designado acontece antes da puberdade,” explica Malpas, “não existe, é claro, intervenção médica. A única alternativa é dar apoio à criança e à família para que ela possa ser aceita socialmente.” Mesmo a decisão de fazer a transição de gênero mais adiante, ele deixa claro, é resultado de um longo processo de avaliação. Por isso, a preocupação em trabalhar com escolas, que são o ambiente mais importante para a criança fora de casa. “A recomendação mínima que fazemos,” explica, “é que a criança possa usar o banheiro associado ao sexo que escolheu.” Mas o projeto do Ackerman inclui materiais didáticos e interação com professores. Nos últimos quatro anos, Jean Malpas se tornou um consultor em alta demanda para escolas. Em 2011, ele foi um palestrante convidado pelo Instituto Noos, do Rio de Janeiro, especializado em famílias e conflitos relacionais. Carlos Eduardo Zuma, um dos fundadores do Noos, diz que Malpas, convidado por ser um nome conhecido na psicoterapia de jovens LGBT, causou surpresa na plateia com sua apresentação sobre fluidez de gênero na infância. “Não tínhamos conhecimento algum sobre esta área da psicoterapia”, diz Zuma.

Na escola do Brooklyn, a diretora Rebecca Fagin recebe o Estado em seu escritório em meio à correria com o final do ano letivo. A criança cuja transição de gênero foi supervisionada por Jean Malpas, ela conta, dizia aos pais que não era menina, era menino, desde os três anos. Os pais são profissionais de classe média e se abriram com franqueza para Fagin. A criança já se vestia de maneira masculina e só usava cabelo curto mas, como era designada menina, vivia mais cercada de garotas na escola. Fagin conta que, antes de conhecer Malpas, indicado pelos pais da criança, já se preocupava com o bem-estar de crianças com fluidez de gênero. Ela passou o verão de 2015 preparando o processo de transição. Começou pelo topo, com a administração e contatou um pequeno grupo de pais cujos filhos eram próximos à criança. Depois foi incluindo outros e, na véspera do primeiro dia de aula, todos os funcionários, de guardas de segurança a cozinheiros, fizeram um workshop.

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Faço à diretora a pergunta cuja resposta posso adivinhar: a aceitação é muito mais fácil entre as crianças? Ela sorri. “Sim”, lembra, “os colegas diziam, ‘e daí?’ Ou, ‘já achávamos que ela era um pouco menino’”. Rebecca Fagin supervisionou em sua escola a transição de uma segunda criança de menina para menino na mesma quinta série, este ano. Ela sabe que a aceitação do desconhecido passa por uma tolerância de mão dupla. Quando conversa com os alunos, dispersa a noção de que, se erram de pronome ou esquecem e chamam a criança pelo nome antigo, estão insultando um colega. Pergunto se a história das duas crianças atraiu a atenção de pais de outras escolas e ela confirma que uma família está tentando se mudar para a região do bairro que dá direito à matrícula na PS29. Admite também que, com o rápido processo de gentrificação do Brooklyn, a diversidade étnica e econômica no corpo de estudantes vai caindo.

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Mas Jean Malpas, com seus anos de experiência, não vê na classe um fator determinante na aceitação das filhos com fluidez de gênero. “O que notamos,” diz, “é que o estresse causado pela pobreza, combinado com pouca educação, acaba por aumentar o estresse da criança que não se conforma com o sexo designado. Uma vez que explicamos à família que não se trata de patologia e, quanto mais a criança for aceita, ela será melhor ajustada e bem sucedida na idade adulta, a tendência é os pais reagirem com amor e não rejeição,” ele diz. “Aceitar é proteger.” E se, por motivos religiosos, uma família disser, não quero meus filhos menores frequentado a turma da criança que fez a transição? “Respondo como responderia se uma família não quisesse seus filhos estudando com muçulmanos,” ele diz. “É contra a lei discriminar, ponto.”

O psicólogo alerta que, para aliviar a angústia intensa provocada pelo inconformismo com gênero, crianças e adolescentes devem também ser orientados a se proteger: “O mundo está cheio de bullies e uma linha tênue separa proporcionar segurança de criar uma ilusão de segurança.” A ênfase nas famílias, não importa a natureza dos relacionamentos entre os adultos responsáveis, é fundamental para Malpas. “Sabe quando pedem, nos aviões, que, em caso de despressurização, os adultos ajustem primeiro sua máscara de oxigênio para depois assistir as crianças?”, pergunta. “É uma analogia apta para os pais de crianças com fluidez de gênero. Eles precisam estar respirando para ajudar seus filhos a respirar.”

O que fez um imigrante belga trilhar um caminho tão desconhecido numa cidade como Nova York, já celebrizada no cinema e na literatura como campo fértil para psicoterapia? Um episódio numa sessão ajuda a explicar. No começo da projeto, Malpas recebeu uma criança com a mãe, que advertiu, ela não vai sossegar um minuto se eu não ficar na sala, sente tanta ansiedade que não se afasta de mim. A criança logo mandou a mãe embora e ficou absorvida com outras na sessão de duas horas. Na saída, perguntou: “Posso voltar aqui quando eu tiver 15 anos?” Sim, foi a resposta. “Posso voltar quando eu tiver 25 anos? E com 50 anos também?” Exausta com seu mundo de exclusão, ela queria alguma garantia de que poderia sempre voltar ao pequeno mundo recém-descoberto.

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