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OS DUELISTAS

Assistimos à cena em que o protagonista não é o xerife abandonado pelos amigos nem os bandidos que voltam para tomar a cidade. É o tempo

Por Christian Ingo Lenz Dunker
Atualização:

Em tempos nos quais a política misturou-se, definitivamente, com o noticiário criminal vale a pena lembrar como Edgar Alan Poe (1809-1849) inaugurou este gênero que é o romance policial com um pequeno conto chamado A Carta Roubada. Nele, uma carta comprometedora, dirigida à rainha, é desviada pelo ministro que a esconde em sua casa. A partir de então o ministro tem a “rainha em suas mãos”. Na condição de que consiga esconder a carta da polícia e do detetive Dupin (enviados pela rainha) e desde que o rei continue a desconhecer a existência da carta, o ministro adquire um estranho poder sobre a rainha. O poder que deriva do fato de que ele não confronta abertamente seu poder com o dela. Entre eles existe uma guerra. Ele tentando esconder a carta e ela tentando recuperá-la. Mas é uma contenda secreta, pois diante de todos, e principalmente do rei, ambos devem comportar-se como se nada estivesse acontecendo.

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Poe escreve este conto no momento em que a prática dos duelos adquire um novo impulso, deslocando-se da nobreza para a burguesia. É o período onde se passa também o livro de Joseph Conrad, Os Duelistas. Com o declínio da monarquia nos Estados europeus, fruto das invasões promovidas por Napoleão, surge um novo tipo de relação com a honra. Não apenas baseado na defesa dos valores genealógicos e familiares, mas sua mistura cada vez mais explícita com interesses mundanos. Neste momento fixam-se certas regras sobre como o duelo deve acontecer: a escolha de dois padrinhos de cada lado, a tentativa preliminar de resolver a disputa por meio de acordo ou esclarecimento, a presença de um médico, a verificação das armas. No século 16, o cardeal Richelieu tentou acabar com os duelos, sem sucesso, contribuindo apenas para que ele ocorresse de forma mais ritualizada, evitando as soluções intempestivas no calor da hora.

O conto de Poe capta uma novidade em termos de duelo, ou seja, uma disputa entre classes diferentes, a rainha e o ministro, infringindo a hierarquia anterior suposta entre ambos. Daí a existência de cartas incriminatórias que não deviam ser usadas enquanto a rainha se comportasse direito, deixando o ministro imune em seus afazeres ilícitos.

No duelo desencadeado entre nossa rainha Dilma e o ministro Cunha, há cartas escondidas de parte a parte, ainda que a polícia tente recuperá-las e que não estejamos de olhos fechados diante da intriga palaciana. Mas faltava-nos um Dupin, protótipo do detetive moderno e personagem inspirador dos futuros psicanalistas, testemunha e padrinho dos duelistas.

No conto de Poe, Dupin visita a casa do ministro notando que ele havia escondido a carta bem à vista de todos, apenas revirando seu envelope e deixando-a em cima da mesa, porque ali ela não seria percebida. A polícia não conseguia perceber que a astúcia do ministro consistia em escondê-la não escondendo, colocando-a onde ela não devia estar. Exatamente como o ministro do conto de Poe, Eduardo Cunha inaugurou uma espécie nova de contenda. Dilma invoca a honra, seu passado, sua ficha limpa. Duelo entre o baixo clero e seu agenciamento miúdo de interesses contra a alta “nobreza” e sua função de representar os interesses maiores do País. No momento, os dois planos estão de igual para igual.

Cunha, nas bravatas que antecedem o duelo age como se pudesse esconder sua carta e ao mesmo tempo mostrá-la para quem quisesse ver. As trocas obscenas de favores, o fisiologismo discursivo e as barganhas imorais a expensas do interesse público não precisam mais de segredo. Assim, viola-se tanto o sentido tradicional de nosso decoro político quanto a própria ideia de honra ou a chamada “ética”. Denunciando todos, Cunha cria para si uma espécie de efeito de purificação. Contra isso, valores como amor, honra ou reputação se degradam na medida em que pagamos para mantê-los. Cada ato confirma que são fabricados com falsa moeda. Muitas chantagens terminam em duelo e violência, pois são resolvidas à parte da lei, nesta zona cinzenta longe do olhar do rei. Como se duas pessoas (duo) suspendessem a negociação pela palavra e que deixassem o regime das aparências de lado, criando sua própria lei. A novidade aqui é que temos um duelo entre diferentes níveis de instrumentalização da lei, com intensa mediação jurídica ou parajurídica.

Estamos agora como as mulheres e crianças que vão deixando as ruas vazias e espiando pelas janelas, atrás das cortinas, os bandidos de um lado e os mocinhos do outro se encontrarem para o duelo ao por do sol. Como em Matar ou Morrer, clássico do faroeste estrelado por Gary Cooper, o personagem principal não é nem o xerife abandonado por seus amigos, nem os bandidos que voltam para tomar conta da cidade, mas o tempo. O tempo do retorno da carta ao seu lugar.

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No conto de Poe o duelo é evitado por uma manobra dialética pela qual o detetive rouba a carta roubada sem que o ministro se dê conta. Ladrão que rouba ladrão, neste caso, não tem perdão. Como nós ainda não temos o nosso Dupin o drama político nacional evoluiu mesmo para o faroeste caboclo, como na música da Legião Urbana. Lembremos que João de Santo Cristo, nascido na fazenda, vem para Brasília em busca de um futuro melhor, mas torna-se traficante e é preso. O amor por Maria Lúcia o salva uma primeira vez, mas, bêbado, deixa que Jeremias tome seu lugar. Lembremos também: Jeremias organizou a Rockonha e fez todo mundo dançar. Desvirginava mocinhas inocentes e dizia que era crente, mas não sabia rezar. Quando sai da cadeia, Santo Cristo desafia Jeremias para um duelo em Ceilândia. Desleal e cínico, Jeremias atira pelas costas. Santo Cristo decidiu usar a arma só depois, afinal era bandido, mas não dos que protegiam general de dez estrelas.

Ou seja, neste duelo onde não há santos, onde todas as cartas parecem estar sobre a mesa (ainda que extraídas sob delação premiada), nós, enganados espectadores, presumimos que o desenlace está a caminho. O duelo é o ponto no qual a honra finalmente é convocada. Por mais trágico que seja seu fim, provavelmente com todos mortos, com prejuízos incomensuráveis de parte a parte, e para o Brasil, o duelo marca um novo início. Espera-se que depois dele uma nova realidade pode ser sonhada. Jacques Lacan analisou A Carta Roubada para mostrar que a estrutura da verdade é que a carta chega sempre ao seu destino. O destino deste duelo que nos caberá a todos assumir e pagar.

CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER É PSICANALISTA E PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP

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