Às vezes apenas a morte torna possível o reconhecimento público. Tal se viu há duas semanas com o falecimento de Dib Lutfi, o notável “câmera-olho” do Cinema Novo. Acontece de novo, por cruel coincidência temporal, com o desaparecimento de Raoul Coutard, o maior câmera e diretor de fotografia da nouvelle vague francesa.
Não que Dib ou Coutard fossem desconhecidos. Pelo contrário. Todo mundo que é o do métier os conhecia e lhes admirava o imenso talento. Mas, para o público em geral, e mesmo para a crítica mais popular, o cinema se resume a atores, atrizes e, às vezes, diretores. Os chamados “técnicos” vêm depois. Ou permanecem no anonimato. Mesmo quando se trata dos fotógrafos que, afinal, criam ou viabilizam a forma cinematográfica imaginada pelos cineastas. São coautores dos filmes; pelo menos os grandes, como Dib Lutfi e Raoul Coutard. O Cinema Novo não teria sido o mesmo sem o primeiro, nem a nouvelle vague francesa sem o segundo.
Raoul Coutard se foi, esta semana, aos 92 anos. Coutard assina alguns dos principais filmes do novo cinema francês, que, na passagem dos anos 1950 para os 1960, revolucionou a maneira de fazer filmes não apenas em seu país, mas em todo o mundo, Brasil incluído.
Seu nome é mais ligado ao de Jean-Luc Godard, o genial cineasta franco-suíço, último remanescente do grupo inicial da nouvelle vague. Com Godard, Coutard fez nada menos que 16 filmes entre eles Acossado, Band à Part, Pierrot le Fou, Alphaville, Week End à Francesa, Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, Passion, Prenome: Carmem. E também O Desprezo, talvez o mais belo dos filmes de Godard.
Vale a pena nos debruçarmos um pouco mais sobre este trabalho de reinvenção (mais que de adaptação) do romance do italiano Alberto Moravia. Em O Desprezo, temos a história de um casal (Brigitte Bardot e Michel Piccoli). Paul Javal (Piccoli) é um escritor contratado para escrever o roteiro de uma filmagem da Odisseia, a ser dirigida por Fritz Lang (que interpreta a si mesmo). O produtor é o grosseirão Jeremy Prokosch (Jack Palance). Camille Javal (Brigitte), antes apaixonada pelo marido, passa a desprezá-lo quando supõe que este a “ofereceu” ao produtor em troca de melhor pagamento pelo roteiro. A história termina de forma trágica.
Ora, por que destacar esse filme, para além das notáveis qualidades visuais que se devem a Coutard? De fato, poucas vezes se viu no cinema trabalho de tanta beleza, tanta intensidade e originalidade como este, com suas filmagens na ilha mediterrânea de Capri.
No entanto, há um detalhe a mais e que vem exposto numa sequência de abertura deste longa-metragem de 1963. Bem à sua maneira provocativa e brechtiana, Godard expõe os materiais de construção do filme. Vemos uma mulher caminhando, acompanhada da equipe técnica que a filma. Alguém segura o microfone, enquanto a câmera desliza sobre um trilho, realizando um travelling lateral. A voz do diretor vai enunciando o que virá: uma história de Moravia, interpretada por Brigitte Bardot e Michel Piccoli, fotografada por Raoul Coutard, com música de Georges Delerue, montada por Agnès Guillemot..., etc. No final do plano, as imagens mostram Coutard e sua câmera se voltando para a tela, isto é, para o olhar do espectador, quebrando a quarta parede e lembrando-o que todas as imagens a seguir se deverão ao operador de câmera e fotógrafo que ele acabou de ver em seu trabalho. É o reconhecimento de Godard da coautoria de Coutard na realização de O Desprezo.
Enfim, Coutard foi homem de importância ímpar para ao cinema mundial. Em Acossado, em especial, definiu uma técnica de câmera na mão que aproximava o filme de ficção da reportagem policial. Dizem que teria filmado desse jeito por instrução do próprio Godard, que queria dar tom “jornalístico” à sua ficção. Pode ser. Mas a verdade é que Coutard foi imposto a Godard pelo produtor de Acossado, George Beauregard, que entendia, com razão, precisar de alguém experiente na equipe do longa-metragem de estreia de um crítico talentoso dos Cahiers du Cinéma, porém com pouca experiência na “cozinha” do cinema. Coutard era esse homem e seu retrospecto já contava. Em Acossado, filmou a história de amor bandido entre Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg com a câmera na mão, nervosa e instável, como numa reportagem. Que, no entanto, contemplava inesperados momentos de lirismo.
Parisiense, nascido em 1924, Coutard estudou Química e se empregou num laboratório de revelação fotográfica. Alistado no exército, serve na Indochina, onde se exercita na fotografia das operações militares. Percorre o Camboja, o Laos e o Vietnã por conta própria. Num bar em Hanói, conhece o cineasta Pierre Schoendoerffer e, com ele, realiza o documentário La Passe du Diable em 1958. Na conta “solo”, como realizador, Coutard terá duas obras de guerra Hoa-Bihn – Um Hino de Amor à Paz (1969) e Operação Leopardo (1979), além de S.O.S. a San Salvador, de 1982.
Coutard trabalhou também com Truffaut, assumindo a direção de fotografia de filmes importantes como Jules e Jim, A Noiva Estava de Preto e Atire no Pianista, um diálogo com o cinema noir. Dirigiu a fotografia de Z, um dos mais famosos filmes do franco-grego Costa-Gavras. Contam-se mais 70 longas-metragens em seu currículo como câmera e diretor de fotografia. O último foi Inocência Selvagem, de Philippe Garrel, em 2001, suntuoso ensaio em preto e branco. Não por acaso, Garrel é considerado o maior herdeiro da nouvelle vague. Raoul Coutard surfou essa onda até o fim.