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Outro tom

A volta da Sinfônica de Teerã, tocando Beethoven, leva esperança de abertura ao Irã. Mas os conservadores não querem sopranos e contraltos sozinhas no palco

Por Jamil Chade | Genebra
Atualização:

Numa sala de concertos lotada, a mera entrada em cena do maestro causou uma cena inusitada. Antes mesmo de uma só nota ter sido tocada, o público se levantou para ovacionar os músicos. No fundo, era a existência daquele concerto que estava sendo comemorada. Há duas semanas, a Orquestra Sinfônica de Teerã voltou aos palcos, depois de três anos silenciada por um dos governos mais repressores da região. Seu retorno, portanto, foi visto como um símbolo de um país que tenta normalizar suas relações com o Ocidente, busca um acordo nuclear e quer, acima de tudo, o fim das sanções que estrangulam sua economia. Não faltam, porém, alertas de ativistas de direitos humanos para que o Ocidente não se deixe enganar pela melodia.

Véus e Violinos: o maestroRahbariretornou do exílio para conduzir a orquestra Foto: VAHID SALEMI/AP

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Criada ainda nos anos 1930, a Orquestra Sinfônica de Teerã é uma das mais antigas da região. Ela acolheu nomes como Yehudi Menuhin, Isaac Stern ou Maurice Béjart e tinha sobrevivido a muitas etapas da história iraniana: um golpe de estado promovido pelo Ocidente, a revolução islâmica, a guerra Irã-Iraque. Mas ela não sobreviveu ao governo de Mahmoud Ahmadinejad, que, sob o pretexto da falta de dinheiro, encerrou suas atividades. No governo atual, não são poucos os que admitem que a pressão dos grupos mais radicais dentro do Irã foi o real motivo para silenciar a orquestra. 

Para a reestreia da sinfônica, o governo moderado de Hassan Rouhani trouxe de volta ao país o maestro Alexander Rahbari, que havia optado pelo exílio austríaco ainda nos anos 1970. Durante sua carreira, ele já havia comandado 120 orquestras europeias, entre elas a Filarmônica de Berlim. 

Na primeira fila, a lista de convidados incluía políticos locais e religiosos, num sinal de que a administração de Rouhani acatava tudo o que iria ocorrer. Uma mensagem no final enviada da conta de Twitter do presidente chancelou o evento. 

Artistas e embaixadores estrangeiros também estiveram presente e transformaram o evento em uma demonstração de apoio a uma suposta transição cultural. 

Quando os primeiros versos da 9.ª Sinfonia de Beethoven ecoaram, a ordem dos diplomatas ocidentais era a de maximizar a acústica e fazer ressoar aqueles acordes. “Amigos, não estes sons! Vamos tocar algo mais agradável e mais alegre”, cantou em alemão o barítono, seguindo o script da sinfonia. Imediatamente, embaixadores, como o da Holanda, tuitaram seus aplausos. “A ordem era mostrar o apoio do mundo à iniciativa, fortalecendo internamente os grupos mais moderados e deixando claro que os conservadores estavam isolados”, contou ao Estado um diplomata da União Europeia que pediu para não ter seu nome mencionado. “O concerto foi tudo menos um mero evento cultural”, avaliou.

De fato, tudo foi milimetricamente calculado. Se o primeiro som emitido pela orquestra veio do hino nacional iraniano, numa reverência aos grupos mais conservadores, o que o público descobriu instantes depois foi a performance de uma sinfonia que serve de pilar para a cultura ocidental e é até mesmo usada como hino da União Europeia: a 9.ª de Beethoven. O coro, mesmo com mulheres cobertas com véus, fez ecoar na sala as palavras em alemão da Ode à Alegria. O maestro Rahbari confessou mais tarde que os 87 músicos e 70 cantores ficaram em choque diante do desafio. 

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O projeto de reavivar a Sinfônica de Teerã não se limita a apenas uma noite de concerto. A orquestra subirá aos palcos quatro vezes por mês e a meta de Rahbari é formar uma nova geração de músicos e de maestros no país. O governo também promete verba - e vistos - para óperas e profissionais ocidentais. 

A iniciativa, contudo, não vem sem resistências. As alas mais conservadoras em Teerã têm feito críticas públicas à decisão do Ministério da Cultura de promover novos eventos, principalmente com música. “A visão desse grupo é de que a música ocidental, ainda que erudita, mina os valores do Islã”, revelou um funcionário do ministério que, também pedindo anonimato, falou um pouco sobre os confrontos internos do governo. “Muitos eventos menores foram sabotados nos últimos meses e a imprensa nem sequer tem a possibilidade de noticiar tudo livremente”, declarou. “Isso é para que não haja polêmicas ou uma reação ainda mais dura (à pequena abertura).”

Um dos principais pontos de discórdia se refere à possibilidade de que sopranos ou contraltos possam cantar sozinhas num palco. Os ultraconservadores haviam conseguido aprovar uma determinação segundo a qual uma mulher somente poderia subir ao palco se fosse acompanhada por um cantor homem. E para que a Sinfônica de Teerã retornasse foi negociado o tamanho de cada véu que as musicistas deveriam usar. Fontes do governo garantem que muitas delas continuam protestando, principalmente as violinistas - elas alegam que o véu atrapalha o manejo do instrumento. 

Em entrevista a jornais ocidentais na semana passada, Rahbari tentou minimizar as críticas dos mais ortodoxos, lembrando que a música sempre fez parte da cultura no Irã. “Quando eu era criança, tocava Mozart”, contou. “Um dia, minha mãe, que era muito tradicional, pediu para falar com um mulá de nossa região e disse a ele que eu estava tocando Mozart”, continuou. “Ela o questionou se isso estava autorizado e ele respondeu: ‘Eu não conheço o senhor Mozart pessoalmente, mas ouvi dizer coisas muito boas sobre ele. Tenho certeza de que seu filho não terá problemas’.”

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Para os governos ocidentais, a reabertura da orquestra se insere em um esforço do Irã de dar sinais de que quer voltar a normalizar suas relações com a Europa e os Estados Unidos. Não por acaso, capitais europeias instruíram seus diplomatas a marcar forte presença no dia do primeiro concerto. O evento coincidiu com as negociações para um acordo nuclear entre Teerã e Washington.

Naquele mesmo momento, o governo de Rouhani flexibilizava algumas leis para permitir que mulheres pudessem ir a estádios de futebol ou ginásios esportivos. No ano passado, a presença de uma torcedora em um jogo de vôlei acabou em sentença de prisão e multas.

As novas atitudes de Rouhani, ainda que apontem para uma nova direção, não convencem os ativistas de direitos humanos. Eles alertam para o fato de que as violações e abusos continuam no Irã. Em março, informe da Organização das Nações Unidas revelou que Teerã continua sendo o governo que mais executa pessoas. Segundo a ONG Iran Human Rights, foram 721 execuções no ano passado.

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O relator da ONU para o Irã, Ahmed Shaheed, também destaca que os sinais positivos que o governo tenta passar ao mundo nem sempre são traduzidos domesticamente. Segundo ele, 2014 foi o ano mais sangrento registrado no país: o número de penas de morte levadas a cabo foi duas vezes superior ao de 2008 e 2009. Muitas execuções ainda ocorrem em praças públicas.

Em seu informe apresentado à ONU no final de março, Shaheed denunciou como líderes do Movimento Verde - que em 2009 promoveu uma série de protestos por mais abertura - continuam em prisão domiciliar. Ele também apontou que as leis locais mantêm a “interferência do governo” sobre a atividade de advogados. 

No campo da liberdade de expressão, se a Sinfônica de Teerã foi autorizada a tocar uma obra em alemão, a realidade da imprensa é bem diferente. Publicações foram fechadas e, desde julho de 2014, 13 jornalistas e blogueiros foram presos pelo governo, sob a justificativa de promover “propaganda contra o sistema” ou de ameaçar a “segurança nacional”. O informe de Shaheed revela que o governo tinha planos de fechar 17 canais de televisão “que apoiavam o inimigo e provocavam tensões sectárias no Islã”.

Entre as principais vozes da oposição dentro do Irã, as mensagens também são de alerta. “O país tem centenas de prisioneiros de consciência, minorias religiosas enfrentam perseguições, sindicatos são reprimidos e as autoridades estão preparando a adoção de leis ainda mais discriminatórias contra as mulheres”, declarou Shirin Ebadi, advogada, ex-juíza, ativista de direitos humanos, primeira iraniana e primeira muçulmana a receber o Prêmio Nobel da Paz, em 2003. Suas declarações foram feitas em março, quando o Brasil optou por se abster em uma votação na ONU que pedia a condenação do Irã por violações aos direitos humanos. “De acordo com as leis, o testemunho de duas mulheres equivale ao de um homem”, exemplificou Ebadi. 

Em 7 de maio de 1824, quando a 9.ª Sinfonia foi executada pela primeira vez, lenços foram erguidos ao ar, assim como chapéus e mãos, para que Beethoven pudesse sentir que o público o ovacionava. O alemão já estava surdo naquele momento. Mas saiu do teatro com a certeza de que os sinais foram positivos. 

Quase 200 anos depois, o mundo político também tentou dar seus sinais aos grupos moderados dentro do Irã, sabendo que a volta da Sinfônica de Teerã era apenas o primeiro movimento de uma complexa obra de geopolítica. Foi como se lenços da esperança de tempos melhores tivessem sido erguidos, na expectativa de que a surdez possa ser superada. Mas também com a certeza de que não bastarão apenas músicas belas para convencer a comunidade internacional - e os ativistas iranianos de direitos humanos - de que o Irã mudou. 

Um negociador espanhol integrante das missões que tentam superar algumas das crises no Irã resumiu o momento citando um compatriota, o dramaturgo basco Miguel de Unamuno: “Cuidado, as ditaduras também produzem belas canções”.

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