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Outros carnavais

Há 50 anos, morria José de Freitas Valle, mecenas que comandava os corsos na Av. Paulista

Por Marcia Camargos
Atualização:

Na pele de um pierrô de cetim vermelho, com botões, gola e detalhes em branco, um célebre mecenas dava o tom e o ritmo do carnaval. Em princípios do século 20, José de Freitas Valle era um dos responsáveis pela agenda cultural de São Paulo a partir da Villa Kyrial, uma chácara urbana de sua propriedade na Rua Domingos de Morais. Folião dos mais animados, todo mês de fevereiro revivia os festejos de Momo pelo viés das tradições venezianas. Nada de marchinhas, batuque, cordões e outras referências populares que remetessem às nossas heranças negras ou ameríndias. Na Belle Époque tropical imperava a folia de emoções comedidas e raízes européias, importada de Veneza e do balneário francês de Nice. Ao cair da tarde, o Triângulo, formado pelas Ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro, enchia-se de tílburis e caleças, as saudosas carruagens de quatro rodas e dois lugares, puxadas por uma parelha de cavalos. No centro comercial da Paulicéia, moças, rapazes e meninos de pé no estribo brincavam entre si, jogando serpentina e água-de-cheiro uns nos outros para deleite das pessoas simples que acompanhavam da calçada. Por incrível que pareça, tudo isso acontecia sem instrumentos musicais nem o acorde de melodias. Reinava o silêncio quebrado apenas pelo ronco dos motores que não raro ferviam e o barulho das buzinas, então denominadas klaxons. A burguesia industrial, composta dos imigrantes que haviam feito fortuna, exibia a riqueza recente no brilho metálico de seus automóveis, desfilando ombro a ombro com os quatrocentões que ainda a olhavam com certo desdém. De 1908 em diante, graças às melhorias implementadas pelo prefeito Antonio Prado na Avenida Paulista, como passeios largos e ampla arborização, o corso transferiu-se para a nova artéria elegante da futura metrópole. Ali, entre 3 horas da tarde e 10 da noite, quatro fileiras de carros enfeitados passeavam lentamente em dupla direção. Se nos outros meses a elite andava em Cadillacs, agora dava preferência aos landôs e às vitórias, as antigas carruagens com cobertura dobrável e um assento na frente, para o cocheiro. Antes, passavam pelas lojas Flora, Hortolândia ou Floricultura para receber decoração apropriada. Uma profusão de hortênsias transformava o veículo em pagode chinês ou em cisne de dálias brancas. Outros viravam caramanchões de cravos vermelhos ou vinham disfarçadas de barco com vela de azaléias e casco de rosas. Yolanda Penteado, a grande dama das altas rodas paulistanas, relembra que fazia o corso no Renault cupê do seu irmão, sentada muito arrumadinha na capota, tornando-se alvo fácil dos confetes dourados. Algumas famílias quotizavam-se para alugar caminhões convertidos em barracas de folhagens e flores. Havia os que optavam por artifícios menos complicados, adornando a lataria com colchas bordadas e arranjos florais. Os barões do café armavam tablados junto às grades de seus palacetes para assistir ao corso que vinha substituir naqueles dias de folia o velho footing das tardes de sábado e domingo. Ao anoitecer, acendiam as luzes de casa e convidavam os conhecidos para tomar refresco. Era o horário em que Washington Luís aparecia, de chapéu e cavanhaque, ao lado de Freitas Valle todo sorrisos. Voltavam de um almoço à fantasia no solar da Vila Mariana, ao qual os convidados compareciam mascarados, só mostrando o rosto quando iniciavam a refeição. Em seguida rumavam para o corso nos carros alegóricos especialmente desenhados para a data. Em 1915, Nemitz, um dos mais notáveis floristas do período, construiu uma enorme cesta de piquenique sobre o chassi de uma caminhonete, dentro da qual se postaram quase 30 artistas vestidos de pierrôs e colombinas. José de Freitas Valle morreu há 50 anos em pleno carnaval. Manuel Bandeira escreveu sobre ele no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, e a imprensa paulistana tratou de ressaltar sua importância no cenário cultural da cidade, quando oferecia memoráveis banquetes à nata político-financeira, mas também acolhia com generosidade os jovens talentos sem recursos em busca de apoio e patrocínio. Apesar disso, a Villa Kyrial acabaria demolida, levando consigo a memória de toda uma época. Na ocasião, lamentando o fato, Guilherme de Almeida afirmou que naquele ambiente estimulante os artistas aprenderam a enfrentar uma audiência: "Poetas, recitamos; músicos, compusemos e executamos; escritores, lemos e dissertamos; pintores e escultores, expusemos. Tímidos estreantes, aí foi que pudemos comunicar a nossa obra primeira, e, às vezes, prima...", registrou ele em 20 de junho de 1961, na coluna Eco ao Longo dos meus Passos, que mantinha neste mesmo jornal O Estado de S. Paulo. Personagem polêmico e multifacetado, figura de relevo da República Velha, este gaúcho de Alegrete deixou a terra natal aos 15 anos para estudar Direito na Faculdade do Largo São Francisco. Celeiro da classe dirigente, o curso rendeu-lhe valiosas amizades, franqueando seu ingresso aos altos escalões do então fechado Partido Republicano Paulista. A residência de Freitas Valle, adquirida em 1904, converteu-se em um ponto de encontro de pintores, escultores, intelectuais e músicos. Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Mário e Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Souza Lima e Francisco Mignone foram alguns dos freqüentadores desse espaço de sociabilidade que, reunindo inclusive a vanguarda da Semana de 22, funcionou como um fator de civilização na então provinciana São Paulo. De Enrico Caruso a Sarah Bernhardt, estrangeiros de renome em visita à capital faziam do salão artístico-literário uma parada obrigatória. Brincalhão, apesar do traço autoritário, costumava dizer que tinha um "feixe d?almas". Mas ao contrário de Fernando Pessoa, estas não se desdobravam em heterônimos, e sim em personas de um romance. Bem definidas, suas identidades eram cultivadas em separado, cada qual sob um pseudônimo. No formidável leque de perfis, Freval, o manipulador de perfumes, tinha fregueses fiéis como Paulo Prado, adepto da fragrância Au Trèfle Astral. Na culinária, outro campo em que se aventurou, elaborava banquetes suntuosos sob o avental do maître Jean Jean, fundando a Hordem dos Gourmets, com H, para encorajar experimentações gastronômicas e dilatar os horizontes do paladar. Segundo críticos da área, ele foi pioneiro na introdução de ingredientes e frutas tropicais em pratos batizados de côtelettes enigmatiques, ou mousse neigeuse aux dattes d?Orient et aux cerises d?Occident. Já como poeta, Jacques D?Avray, que escrevia em francês, não comercializava os versos nas livrarias. Seus tragipoemas, de tiragens mínimas, eram distribuídos a poucos e raros em requintadas edições fora do comércio. Com Alphonsus de Guimaraens, Álvaro Viana e Severiano de Rezende, D?Avray abraçou o movimento simbolista, que procurava infundir o êxtase poético às minúcias do cotidiano. No jogo cênico diário, levava a estetização às últimas conseqüências. Os serões promovidos na sua mansão de linhas ecléticas expressavam um conjunto bem articulado do qual faziam parte a etiqueta, os vinhos, os trajes, o refinamento dos modos e do imaginário. Neste contexto, é interessante notar que Freitas Valle extrapolou o papel de bon vivant ou dândi excêntrico, firmando um estilo próprio e único no Brasil. Como legislador, em 27 anos de mandatos consecutivos, sintonizado com os ideais positivistas e maçônicos, mostrou-se comprometido com o ensino, participando da implantação de escolas primárias e bibliotecas públicas. De 1912 a 1930 dirigiu o Pensionato Artístico, que manteve no exterior músicos e artistas plásticos cujas produções enriqueceram o acervo da Pinacoteca do Estado, da qual foi um dos fundadores. Autêntico membro da oligarquia patriarcal, gerou respeitável prole dentro e fora do casamento com Antonieta Egídio de Souza Aranha, que faleceu precocemente, aos 39 anos de idade. Namorador incorrigível, recorria a uma estratégia tão original quanto infalível para conquistar as mulheres que passavam por seus domínios. Se os atributos físicos da visitante o encantassem, ele aguçava-lhe a curiosidade sobre o quadro mais belo da sua coleção. Fosse solteira, casada ou viúva, Valle tomava-a pelo braço e, após circular pelos recintos de paredes forradas de telas, parava diante do majestoso espelho veneziano do vestíbulo. Com um delicioso timing de suspense e clímax, apontava para a silhueta nele refletida como sendo a obra-prima do seu acervo. Contam-se nos dedos da mão as que resistiram a tão charmoso galanteio... *Doutora em história social, Marcia Camargos escreveu Villa Kyrial: Crônica da Belle Époque Paulistana (Senac), entre outros livros. Coordena o Centro de Documentação e Memória da Pinacoteca do Estado

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