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Padrão Máfia

Esquema desbaratado pela Operação Jules Rimet aponta para responsabilidade da Fifa, por conivência ou negligência

Por Wálter Fanganiello Maierovitch
Atualização:
RJ - CAMBISTA/MÁFIA/INGRESSOS/COPA - GERAL - Polícia apresenta documentos apreendidos com Paul Whelan, filho de Raymond Whelan, CEO da Match, única empresa autorizada a vender ingressos da Copa do Mundo, acusado de ser um dos chefes de quadrilha internacional de cambistas que agia durante o evento. Com ele foram encontrados uma credencial da última Copa, realizada na Africa do Sul, vouchers de acomodação, ingressos para partidas do Mundial e dinheiro em várias moedas. 12/07/2014 - Foto: UANDERSON FERNANDES/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/PAGOS Foto: UANDERSON FERNANDES/AGÊNCIA O DIA

Certa vez, sobre o fenômeno representado pela criminalidade organizada transnacional, a pesquisadora escocesa Alison Jamieson sustentou que as máfias tinham trocado, fazia muito tempo, a metralhadora pelo mouse do computador. 

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Em outras palavras, nas internacionais criminosas de matriz mafiosa a ideologia dominante é a do lucro. E, diante disso, as máfias passaram a privilegiar - em vez dos crimes de sangue espetaculares - o emprego de tecnologia de ponta, a infiltração nos órgãos de poder e corporações. Mais ainda - isto está no DNA mafioso -, tendem a submeter as instituições financeiras a que se tornem dependentes das movimentações financeiras de suas atividades ilegais.

Com efeito, na Convenção das Nações Unidas de 1988 contra o tráfico ilícito de drogas, concluiu-se que estava o crime organizado utilizando o sistema bancário-financeiro para lavar dinheiro e reciclar capitais em atividades formalmente ilícitas.

Por outro lado, na abertura da Convenção das ONU sobre crime organizado sem fronteiras, em dezembro de 2000 na cidade italiana de Palermo, o então secretário-geral Kofi Annan advertiu sobre a forma de atuar do crime organizado, ou seja, de maneira reticular, e isso estava a gerar lucro a crescer 40% ao ano. Para o ex-czar antidrogas da ONU Antonio Maria Costa, na crise econômica norte-americana o sistema interbancário de compensações não quebrou porque circulava o capital movimentado pela criminalidade organizada. E a supracitada Convenção de Palermo de 2000 - único instrumento jurídico internacional de contraste às associações criminosas transnacionais - preconizou, além da cooperação internacional, a adoção de um tipo penal comum, minimalista e abrangente a ponto de alcançar também associações de doleiros, lavadores de dinheiro sujo, traficantes, cambistas e quejandos.

Diante desse quadro criminal preocupante, com evasões e sonegações fiscais continuadas de permeio, não podem ser consideradas surpresas as recentes ações de cambistas a operar no Brasil redes criminosas transnacionais, empenhadas na venda de ingressos para os jogos da Copa da Fifa. Na disputa da África do Sul ocorreu o mesmo e a Fifa, com seu secretário-geral, Jérôme Valcke,- agora no Brasil e sem corar num discurso do agrado apenas à criminalidade organizada-, sustentou a impossibilidade de se colocar um fim a esse sistema criminoso. Só que os cambistas associados criminosamente não contavam com a eficiência da Polícia Civil do Rio de Janeiro e o empenho do Ministério Público desse Estado federado.

Pelo que se percebe, a Fifa terceirizou, para o mundial no Brasil, a venda de ingressos e a distribuição de “pacotes de hospitalidade” (jogo com mordomias). O terceiro comprometeu-se a vender pelo preço de face, mas, sem honrar o compromisso e sem construir um mecanismo eficaz de controle, os bilhetes viraram uma espécie de título ao portador, negociáveis por tradição: de mão em mão.

No caso de maior repercussão na mídia, a empresa terceirizada de razão Match Services, cujo sócio-proprietário afirmou prestar serviços à Fifa desde 1999, enviou ao Brasil seu CEO (Chief Executive Officer), Raymond Whelan. Por seu turno, Whelan teria revendido ingressos e pacotes de hospitalidade a um notório cambista internacional, o argelino Lamine Fofana. Segundo a polícia do Rio, Fofana, que ingressou no Brasil como turista e se apresenta como proprietário de uma empresa de nome Atlanta, ligou 900 vezes para um celular da Fifa e tentou subornar policiais que investigavam sua organização criminosa.

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Conforme as investigações - já existe uma ação judicial penal em curso promovida pelo Ministério Público -, Fofana operava uma rede abastecida de ingressos por Whelan. O tal Whelan e seu cunhado - também sócio-proprietário da terceirizada Match, sediada na Suíça - negam as increpações e alertam que as vendas a Fofana foram por uns trocados acima do preço de face. Nada falaram sobre a divisão de lucros ilícitos após a revenda por parte do argelino.

A organização criminosa operada por Fofana restou desbaratada na operação policial Jules Rimet. A eventual coautoria Raymond-Fofana será objeto, no devido processo, de decisão judicial de mérito. Dados investigatórios recentes apontam para um esquema ilícito de revenda, no câmbio negro, de mais de mil ingressos por partida disputada na Copa. Pelos cálculos policiais, o ganho ilegal líquido teria, por baixo, alcançado R$ 200 milhões.

Pano rápido. Não dá para engolir a “cara de paisagem” do presidente da Fifa, como se a entidade não tivesse nenhuma responsabilidade no caso, quer por negligência, quer por conivência. Terceirizar, muitas vezes, é uma forma mafiosa de colocação de laranjas e posterior recebimento por fora. E a terceirização da Fifa é feita, como admitiu o secretário-geral Jérôme Valcke, com a ciência de que seria impossível evitar a revenda criminosa no câmbio negro. No particular, o padrão Fifa copia objetivamente, no quesito terceirizações, o padrão Máfia.

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Walter Fanganiello Maierovitch é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais

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