'Pai Contra Mãe' compila narrativas breves de Machado de Assis

Contos do Bruxo do Cosme Velho demonstram a profundidade da literatura do autor

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Por Caio Sarack
Atualização:

Wilhelm Reich (1897-1957) foi um dos maiores pensadores alemães do século 20 e, na obra Psicologia de Massas do Fascismo (1933), ponderou que o dever da psicologia social era explicar “não por que motivo o esfomeado rouba ou o explorado faz greve, mas por que motivo a maioria dos esfomeados não rouba e a maioria dos explorados não faz greve”. Em meio à difusa coerção social, compreendem-se os motivos pelos quais trazemos ordem à desordem mesmo que isso nos custe a própria vida ou a de outro? Se as muitas páginas de psicologia e de ciências sociais parecem colidir e se contrapor, deixando-nos à deriva no mar revolto da sociabilidade e da relação com sujeitos estranhos a nós, a literatura parece funcionar como um machado que rompe a duríssima película que represa nosso rio. 

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Mulher negra com criança branca fotografada na Bahia, em 1860. Foto: Marc Ferrez/Acervo IMS

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Podemos encontrar um sumo exemplar desse objeto cortante em Pai Contra Mãe e Outros Contos (Editora Hedra), de Machado de Assis, antologia organizada por Alexandre Rosa, Flávio Ricardo Vassoler e Ieda Lebensztayn, que também assinam o ensaio no prefácio da edição: Os Inimigos do Homem Serão as Pessoas de sua Própria Casa: Crítica e Apologia Sociais em Pai Contra Mãe.

“Como um obstetra que nos dá as boas-vindas a este mundo com um tapa que nos faz chorar – bem-vindos ao nosso vale de lágrimas –, o narrador machadiano de Pai Contra Mãe rasga o ventre de seu conto sentenciando que ‘a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel’”. Imaginar a figura negra e epilética de Machado em meio à violência escravista à brasileira ligando-a ao cinismo do narrador que erode a vida psíquica das personagens nos dá a dimensão da profundeza produzida pela literatura; sociedade e subjetividade, convicções morais e utilitarismo se mesclam às palavras, antes ascéticas de dicionário, em meio ao realismo de Machado de Assis.

Vejamos o caso de Pai Contra Mãe: Candinho está prestes a sacrificar a vida de seu filho, de quem até então Nossa Senhora não conseguiu garantir a subsistência, quando avista a escrava fugida Arminda, que o salvaria – mas não só de pragmatismo vive o homem, mas de toda convicção que cimentará as ações em seu coração. Candinho lega o aborto que cometeria à escrava. “A vida de meu filho e a de seu filho têm uma diferença que não consegue mais ser descrita só ao apontarmos o pronome possessivo, é a materialidade daquilo que é do outro diante daquilo que é – íntima e irrevogavelmente – meu.”

Ao enunciar esse abismo, o narrador expõe tanto o vínculo umbilical que todos temos com aquilo que é nosso quanto o modo como esse inofensivo pronome permite que separemos os mortos deles dos nossos vivos. Entendemos que Candinho está emparedado e quer salvar sua criança. Ele, no entanto, precisa envolver seu amor com uma forte película a fim de que o amor da escrava-mãe não o faça desistir diante da empatia que, como pai, teria para com o filho alheio: o amor só é possível se for devidamente hierarquizado, não há espaço para todos, porque o espaço é escasso; não há pão para todos, porque o pão é escasso, não há vida para todos, porque “nem todos vingam”. Machado de Assis inocula no utilitarismo o seu próprio veneno – e se o homem, ao buscar o maior prazer de que pode dispor, anula a própria convivência com o outro? 

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Não podemos supor a simples idiotia dos filósofos utilitaristas, e aqui faço menção à palavra “idiotia” em seu sentido preciso: ao apostar na perseguição individual dos homens de seu bem-estar, não se anula ou aniquila seu caráter social, o Utilitarismo estabelece o indivíduo como o material primeiro e inequívoco da vida social, dizendo que esta mesma vida será tanto mais justa quanto mais o fundamento individual for protegido, e em nenhum momento suprime a necessidade das relações sociais. Mas vemos que, quando aceitas, as prescrições assumem as mais interessantes e materiais conformações (e nos sorri o narrador do conto) no mundo social.

A ironia do autor e os parágrafos que formam um corpo de texto aparentemente neutro e distanciado escancaram a violência como resultado de uma interação entre o cálculo da vida social e a verdade subjetiva do pai Candinho. “Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras”, o sentimento do pai não se corrompe, muito pelo contrário: a certeza do abismo que há entre o meu filho e o seu filho pode garantir a tranquilidade de quem pertence ao grupo dos vivos e daqueles que não foram feitos para serem proscritos, e, ao mesmo tempo e sobre o mesmo aspecto, Candinho “abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. – Nem todas as crianças vingam – bateu-lhe o coração”. Os sulcos que a literatura deixa na capa de gelo que cobre o rio da vida socialmente administrada liberam os pulsos que antes éramos incapazes de enxergar. *Caio Sarack é mestre em filosofia pela FFLCH/USP e professor do Instituto Sidarta e do Colégio Nossa Senhora do Morumbi 

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