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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Pânico na rede

Moralismo, ganância e suicídio na história da invasão hacker a um site de relacionamentos extraconjugais

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Atualização:

O dia 18 de agosto talvez entre para a história como o 11 de Setembro da internet. Ou da prevaricação virtual, já que o World Trade Center da vez foi o mais acessado site de relacionamentos extraconjugais da grande infovia. Invadido por um grupo de hackers, que se aproveitou de uma falha no seu sistema de segurança, o Ashley Madison (slogan: “A vida é curta. Curta a vida”) espalhou o pânico mundo afora, inclusive entre brasileiros, a segunda maior clientela do site, infartou pelo menos um usuário e levou outros dois ao suicídio quando 9.7 gigabytes de informações pessoais arquivadas em seu banco de dados vazaram pela internet.

Usando um endereço (.onion) acessado através do Tor, o navegador de comunicação anônima preferido dos nerds, os hackvistas do Impact Team abriram as contas de 32 milhões dos seus 40 milhões usuários e divulgaram nomes, endereços fixos e de e-mail, datas de nascimento, dados físicos, hábitos e preferências sexuais, mais os registros das transações combinadas e os números e senhas dos cartões de crédito com os quais elas foram pagas.  Foi um estrago sem precedentes. Um estrago conjugal, moral, familiar, profissional e econômico, que deixou no chinelo o vazamento interno da Sony de algum tempo atrás e a divulgação de centenas de fotos íntimas de celebridades, no ano passado. 

Prevaricadores virtuais.Mlitares, empresários e figuras do clero entre a clientela Foto: LEE JIN-MAN/AP

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Ao Ashley Madison e sua companhia controladora, a canadense Avid Life Media, com sede em Toronto, a encrenca rendeu, de saída, dois processos individuais, outro coletivo, e um prejuízo provisoriamente orçado em US$ 348 milhões, a ser absorvido por bancos e empresas de cartões de crédito. 

Outros processos virão, se já não vieram. Todos merecidos. Afinal, o único deslize rigorosamente indiscutível em todo esse imbróglio foi cometido pelo site, que não soube sequer proteger seu armazenamento de dados com uma rudimentar fechadura criptográfica. 

No início da semana, John McAfee, o excêntrico milionário escocês que criou o antivírus McAfee, difundiu a hipótese de que o vazamento fora “coisa de mulher sedenta de vingança”, um ato de terrorismo feminista contra os mulherengos que pulam a cerca na grande infovia. A tese é plausível, mas os fatos a desmentem. O raide do dia 18 foi o segundo do Impact Team ao Ashley Madison em 45 dias. O primeiro, em julho, desdenhado pelo então diretor-presidente do site, Noel Biderman, como uma retaliação de algum funcionário insatisfeito, ficou mais no plano da ameaça: ou Biderman fechava o serviço ou sua clientela arcaria com as consequências. 

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Biderman não fechou o serviço. Nem parou de reter os dados dos clientes após o desligamento. Nem deixou de cobrar uma taxa extra de US$ 19 para apagar o histórico dos usuários. Pior: não os protegeu convenientemente da bisbilhotice alheia. Pressionado, demitiu-se na última sexta-feira. Nunca inspirou confiança. Segundo a revista online Motherboard, tudo fez para se apropriar dos dados pessoais dos clientes de um site concorrente, a seção de encontros amorosos da revista eletrônica Nerve.com

Hackers são ladrões de informações, espiões eletrônicos. Para o bem (caso de Edward Snowden, nêmesis da Agência Nacional de Segurança dos EUA) e para o mal, como Biderman tentou ser. Os corsários digitais que invadiram a maior rede de prevaricadores da internet poderiam ser enquadrados na primeira categoria, mas o fuckleak por eles deflagrado, embora possa funcionar como um freio ao excesso de confiança e satiríase de milhões de internautas, não beneficia ninguém. 

Apropriando-se da retórica da transparência e do acesso democrático, os anônimos templários eletrônicos do Impact Team, teoricamente empenhados em expor maridos hipócritas e femeeiros poderosos, montaram uma cruzada moralista, vitoriana, contra a tartufice conjugal, pondo em risco até quem não merecia pagar o pato. Sua crítica, legítima, à falta de proteção à privacidade dos clientes perde um pouco (ou muito) de sentido quando a estes qualificam de “cheating dirtbags”. Se são traidores imundos talvez não mereçam as benesses da privacidade.

Ao dispor aquele chorrilho de intimidades ao alcance de qualquer clique, sites do gênero trombadinha, como 4chan e PasteBin.com, fizeram a festa, postando o que podiam e o que talvez não devessem. Pois nem todo usuário do Ashley Madison corneia a esposa e nem todo prevaricador frequenta o Ashley Madison. Como o site não checa a autenticidade das assinaturas dos clientes, é grande a frequência de nomes falsos, de fachada. Muitos se apropriam de identidades alheias e, mesmo entre aqueles que se inscrevem com o próprio nome, é expressiva a quantidade de curiosos que apenas visitam o site para ver do que se trata e candidatos a pular a cerca que não ousam ir além do flerte virtual. 

Em meio a artistas, funcionários de governo, militares, empresários, professores, estudantes e figuras ligadas ao clero, já descobriram até o endereço de e-mail oficial de Barack Obama, obviamente apropriado por alguém mais cioso de seu anonimato que de sua segurança. Se pagou com cartão de crédito, pode ser facilmente desmascarado. 

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A situação dos militares e do clero é mais delicada. O adultério viola o Código de Justiça das forças armadas americanas e é pecado irremissível para a Igreja. Ainda mais delicada é a situação de gays que preferem continuar no armário a arriscar-se a perder o emprego e integrantes de governos de países, como o Irã, por exemplo, onde chifrar o cônjuge é crime passível de punição por chibatadas e apedrejamento. Quando um membro do governo iraniano apareceu numa lista de fregueses do Ashley Madison, postada no PasteBin.com, até os muezins de Teerã ficaram torcendo para que se tratasse de mais um caso de usurpação de identidade.

Opinião por Sergio Augusto
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