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'Papa Highirte' pertence à tradição latina da literatura de ditadores

Peça de Oduvaldo Vianna Filho que chega às livrarias segue linhagem de Vargas Llosa, García Márquez, Roa Bastos e outros

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Em 1967, quatro escritores amigos – o cubano Alejo Carpentier, o argentino Julio Cortázar, o venezuelano Miguel Otero Silva e o mexicano Carlos Fuentes – reuniram-se num pub de Hampstead, em Londres, para planejar uma grande sacada editorial, que batizaram de Los Padres de la Patria, série de biografias de ditadores latino-americanos inspirada na galeria de figuras históricas da Guerra de Secessão retratadas por Edmund Wilson em Patriotic Gore

Sérgio Britto e Tonico Pereira em cena de 'Papa Highirte', em 1979 Foto: Funarte

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Ficou acertado que Mario Vargas Llosa escreveria sobre o peruano Manuel A. Odria; o chileno Jorge Edwards, sobre o conterrâneo José Manuel Balmaceda; o uruguaio José Donoso, sobre o boliviano Mariano Melgarejo – todos ditadores militares. O projeto ficou no papel, mas a semente germinou. Na década seguinte, o tão festejado boom da literatura latino-americana trouxe embutido um novo subgênero de ficção, protagonizada por caudilhos corruptos e sanguinários e ex-ditadores amargando o fel da derrota e do desterro.

À exceção do teólogo e advogado José Gaspar Rodriguez de Francia, o déspota de Eu o Supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos, os demais vieram da caserna, consoante uma vocação continental, amparada na superioridade das armas, na paranoia anticomunista disseminada pela Guerra Fria e no indefectível apoio da Casa Branca. 

Dessa vertente, exclusivamente ibero-americana, dois brasileiros acabariam participando, não com romances, mas com uma peça (Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho) e um filme (Cabeças Cortadas, de Glauber Rocha, produzido e rodado na Espanha), ambos proibidos pela censura daquela ditadura que o atual “el supremo” daqui e seu vice negam ter existido. A peça, escrita e proibida em 1968 (justo o ano do AI-5), e o filme, lançado lá fora em 1970, só foram anistiados em 1979. 

Alguns dos tiranos romanceados existiram de verdade. Caso, por exemplo, do já citado Rodriguez de Francia, mandachuva do Paraguai durante 26 anos, na primeira metade do século 19. Também naquele período viveram e tiranizaram os caudilhos argentinos Juan Manuel Rosas e Facundo Quiroga, personagens de Facundo, romance de Domingo Faustino Sarmiento tido como o iniciador da linhagem, em 1845.

Rafael Trujillo, figura axial de A Festa do Bode, de Vargas Llosa, pilhou e cometeu atrocidades na República Dominicana ao longo de 31 anos, sob o olhar complacente de três presidentes norte-americanos e permanente assistência técnica de seus respectivos serviços de inteligência.

Mas a maioria dos ditadores saiu mesmo da imaginação dos autores, também eles em boa parte exilados. Miguel Ángel Asturias levou nove anos burilando o general Canale de O Senhor Presidente, inspirado no sátrapa guatemalteco Manuel Estrada Cabrera, por sinal um dos quatro gorilas do compósito criado por Alejo Carpentier em O Recurso do Método. Os outros três? O cubano Gerardo Machado, o venezuelano Guzmán Blanco e o mexicano Porfírio Diaz. 

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O “romance de ditador” de maior prestígio continua sendo, merecidamente, O Outono do Patriarca, de Gabriel García Márquez. Publicado em 1975, seu patriarca é um milico cujo nome não sabemos, que dá as ordens e apodrece às margens do Mar das Caraíbas e simula a própria morte para aquilatar a estima que seus súditos lhe devotam – afinal muito pouca, quase nenhuma. Seu outono é, a bem dizer, um inverno. 

Reais ou imaginários, os sobas cucarachas não tinham como fugir ao estereótipo do fanfarrão fardado venal, cruel, machista e com mando absoluto, que, deposto e corrido do reino, torna-se uma caquética caricatura, sempre a sublimar o poder perdido, a sonhar com uma volta triunfal que nunca se concretiza. Até os delirantes generais de Papa Highirte e Cabeças Cortadas assim podem ser descritos.

Ao ler a peça de Vianninha, recém-editada em livro, encontrei outra similaridade entre Juan Manuel Guzamón Highirte (ex-ditador da imaginária república de Alhambra, exilado e conservado em pulque num bunker de Montalva) e o glauberiano Emanuel Prado Diaz II (ex-soberano da fictícia Eldorado e presumido descendente de Porfírio Diaz, personagem de Paulo Autran em Terra em Transe, recluso num castelo na Catalunha): o apego ao telefone, único elo que lhes resta com o mundo exterior.

Há uma cena de Cabeças Cortadas em que Diaz II (Francisco Rabal, magnífico) fala em dois telefones ao mesmo tempo, com seu operador Freddy, a quem instrui sobre a venda de propriedades, depósitos em contas secretas na Suíça e a construção de monumentos à glorificação de sua memória, e Alba Moreno, para quem acaba cantando o tango Cuesta Abajo, abraçado a uma cadela poodle. É um monólogo cheio de referências à história, à política e à cultura latino-americanas. 

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Tive uma trabalheira danada para tentar esclarecer e dar sentido àquelas alusões – a Perón, Evita, “Carlito” Gardel, à letra de Cuesta Abajo: “...arrastré por este mundo/la verguenza de haber sido/y el dolor de ya no ser”) – aos amigos americanos que me acompanhavam na première do filme no Pacific Film Archive, em Berkeley, em 1971. 

Outro filme da mesma casta quase veio somar-se ao de Glauber, em meados da década de 1970: Late Show, de Carlos Diegues. Nele, um ex-ditador latino-americano desterrado em Paris envolvia-se com uma antiga estrela de Hollywood, a quem oferecia financiar um filme sobre sua finada e idolatrada esposa. Perón, Evita, Norma Desmond – caldo para uma promissora tragicomédia havia. De quebra, Rita Hayworth, que já aceitara o papel, e Marcello Mastroianni, quase isso. Ficou no desejo.

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