Para o bem do Enem, é melhor esquecer 2009

Juntar pedagogia e política levou ao açodamento com as mudanças e comprometeu resultados

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Por Nílson José Machado
Atualização:

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O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi realizado pela primeira vez em 1998 e destacou-se, desde o início, pela consistência e pela nitidez de sua proposta: as disciplinas escolares são meios para o desenvolvimento das competências pessoais, que devem situar-se no centro das atenções de um processo de avaliação. O esforço de convergência e de síntese, realizado entre as diversas áreas e disciplinas de conteúdos, conduziu à explicitação de cinco competências fundamentais, a serem demonstradas pelos estudantes, ao final do ensino médio: capacidade de expressão em diferentes linguagens, de compreensão de fenômenos em variados âmbitos, de análise e argumentação consistente, de enfrentar situações-problema em diferentes contextos, e de ser propositivo, indo além do diagnóstico e formulando propostas de intervenção na realidade.

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Inicialmente, houve incompreensão e resistência ao novo tipo de exame, temendo-se uma desvalorização dos conteúdos disciplinares. Aos poucos, tais reações foram parcialmente amortecidas. Os próprios alunos contribuíram para isso: como a prova era mais simples do que os vestibulares tradicionais, os alunos tiravam melhores notas, não se sentiam "incompetentes" ao realizá-la e gostavam de fazê-la. E o Enem cresceu, passando dos cerca de 150 mil participantes em 1998 para os mais de 4 milhões em 2009.

Nesse percurso, no entanto, nem tudo são flores, e o Enem entrou em alguns desvios perigosos, que chegam a comprometer sua integridade. Um deles foi sua transformação em processo seletivo para as universidades, o que nunca fez parte do projeto inicial. Como instrumento de avaliação, o Enem não é adequado para classificação de alunos; é como usar uma faca de cortar pão como bisturi. No mesmo sentido, os resultados do Enem não são adequados para a classificação e o ordenamento de escolas. Na última divulgação de tais resultados, entre os escores 64 pontos e 65 pontos havia nada menos do que 70 escolas. Entre elas, um reles ponto de diferença, e 70 posições no pseudorranking: muito barulho, muito marketing por quase nada. Pela natureza do exame, os resultados serviriam, no máximo, para organizar as escolas em quatro ou cinco faixas de rendimento: A, B, C, D, E. Qualquer passo além disso é mera caricatura.

No corrente ano, foi apresentado o projeto de um Novo Enem, apontando numa direção que nos parece essencialmente correta. O objetivo seria uma maior aproximação entre as competências gerais já descritas e as matérias do ensino médio. Os conteúdos disciplinares são agora subdivididos em quatro áreas (Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Ciências Naturais) e foram explicitadas competências específicas a serem demonstradas em cada uma das áreas. Em vez de uma prova (63 questões), passou-se a quatro provas, uma para cada área, cada uma delas com 45 questões. As transformações propostas foram profundas e o mais prudente teria sido dedicar um tempo maior para a maturação e a consolidação das mesmas. Um açodamento na implementação das mudanças, compreensível apenas quando se misturam os cronogramas político e pedagógico, comprometeu seriamente os resultados neste ano de 2009. Ocorreram problemas graves tanto do ponto de vista da logística, com vazamentos das questões e adiamento da realização da prova, quanto na própria arquitetura da prova. Naturalmente, o vazamento prejudica a credibilidade do exame, e a confiança na integridade do processo é condição sine qua non para o sucesso de qualquer sistema de avaliação. Mas o efeito mais perverso do açodamento diz respeito à arquitetura da prova, como será mostrado a seguir.

O primeiro aspecto que deveria ter sido mais bem examinado é o tamanho da prova. O número de questões (180) parece exagerado - bastariam 20 a 25 por área. A reiteração de conteúdos - como a análise de gráficos, por exemplo - torna-se enfadonha e a realização do exame em quatro etapas constitui um desgaste físico excessivo e desnecessário. Um segundo aspecto, que se soma ao primeiro, é o fato de que, na formulação das questões, a ânsia de contextualização a qualquer custo, associada a uma interpretação estreita da ideia de contexto, conduz a enunciados verborrágicos, longos demais. Nada pressupõe mais nitidamente um contexto do que uma piada; no entanto, as melhores piadas são, quase sempre, as mais curtas. Os examinadores não parecem levar em conta tal fato, e é praticamente impossível responder a todas as questões de uma das provas mantendo o nível de interesse, em razão de seus imensos e cansativos enunciados. Um terceiro aspecto problemático é um defeito técnico na arquitetura de diversas questões: as alternativas completam o enunciado (caput) de modo independente, transformando o que deveria ser uma questão em cinco questões, e comprometendo ainda mais o tempo de realização da prova. Esses fatos combinados estão presentes, ainda que em diferentes níveis, em todas as provas, tornando sua realização uma verdadeira maratona extenuante, esvaindo-se completamente o gosto que os alunos tinham de realizar o "velho" Enem.

Por essas razões, aos responsáveis pelo Enem resta esquecer o ano de 2009 e retomar sua trajetória bem-sucedida, corrigindo desvios como os apontados. Afinal, se a transformação do Enem em processo seletivo teve alguma influência na consolidação do exame, nos anos iniciais de realização, hoje, tal associação pode ser a principal responsável pela verdadeira anomalia que consiste em uma abstenção de cerca de 40% dos inscritos.

*Professor titular da Faculdade de Educação da USP. Escreveu, entre outros, o livro Educação - Competência e Qualidade

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