Patricia Hill Collins e a experiência de ser uma mulher negra nos EUA

'Eu não via nada de errado em ser quem eu era, mas aparentemente muitos outros viam'

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Por Alessandra Monnerat
Atualização:

A socióloga americana Patricia Hill Collins abre a edição brasileira de Pensamento Feminista Negro explicando que queria escrever um livro que sua mãe pudesse ter lido: “Isso talvez tivesse tornado a vida dela mais fácil”. Essa também é a motivação por trás do trabalho de muitas de intelectuais negras citadas pela autora – recuperar os saberes das mulheres negras, que, segundo ela, foram subjugados. “Saber que o pensamento e o talento das nossas avós, mães e irmãs foram e têm sido suprimidos motiva muitas contribuições para o campo crescente dos estudos da mulher negra.”

A intelectual americanaPatricia Hill Collins Foto: Kim Doria/Boitempo

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Escrito em 1990, Pensamento Feminista Negro compila estudos sobre gênero e raça nos Estados Unidos mapeando ideias propostas por ativistas como Angela Davis, bell hooks, Alice Walker e Audre Lorde. Mas a teoria reunida no livro não foi de todo produzida em universidades. Não apenas porque muitas pensadoras negras tiveram o acesso ao espaço acadêmico negado – também porque, de acordo com Collins, o pensamento feminista negro foi construído a partir de uma sabedoria coletiva, formada por experiências e desafios comuns às mulheres negras dos EUA. A autora lembra que esse grupo social está restrito a possibilidades inferiores de moradia, vizinhança, escola, trabalho e saúde. “As mulheres negras dos EUA vivem em um mundo diferente daquele das pessoas que não são negras nem mulheres”, afirma. “Somente afro-americanas ‘sentem de fato o ferro’ que perfura a alma das mulheres negras; afinal, ainda que as experiências das mulheres negras se assemelhem às de outras, elas continuam únicas”.

Algumas das mulheres que contribuíram para o pensamento feminista negro não deixaram escritos para a posteridade – como Sojourner Truth, ativista que viveu em meados do século 19 e não sabia ler nem escrever, mas falou em discursos sobre sua vivência como mulher escravizada. Vozes da música também contribuíram para a formação desse saber coletivo – de cantoras de blues, como Bessie Smith e Ma Rainey, até representantes do hip hop, como Sister Souljah, Queen Latifah e Salt-N-Pepa. “Por meio de sua música, elas não apenas descreveram as realidades das mulheres negras como também buscaram dar forma a elas.”

O trabalho de Hill Collins enfatiza a importância da autodefinição – a ideia de que a “responsabilidade pela definição da realidade de cada um cabe sobretudo a quem vive essa realidade, a quem realmente passa por essas experiências”. Esse é um dos motivos pelos quais em sua produção acadêmica a autora escolheu usar a primeira pessoa do plural, nós, ao se referir às mulheres negras. Afinal, muitas das vivências descritas no livro também são dela: “A partir da adolescência, fui percebendo que eu era cada vez mais a ‘primeira’, ‘uma das poucas’ ou a ‘única’ afro-americana e/ou mulher e/ou pessoa vinda da classe trabalhadora na escola, na comunidade e no ambiente de trabalho. Eu não via nada de errado em ser quem eu era, mas aparentemente muitos outros viam”. Uma experiência comum é o que ela cita como “guetização” no trabalho. Em empregos ligados a cozinha, limpeza, enfermagem e cuidados de crianças, as mulheres negras geralmente ocupam cargos desvalorizados. Essa população nos EUA ganha 61% do salário oferecido a homens brancos. 

Diferentemente das mulheres brancas, que tiveram sua feminilidade relacionada à fragilidade, à passividade e à domesticidade, desde o tempo da escravidão as mulheres negras eram tratadas como “mulas do mundo” – expressão usada pela escritora negra Zora Neale Hurston. Nas plantações escravocratas, por exemplo, as mulheres desempenhavam o mesmo trabalho dos homens. Ao mesmo tempo, tinham sua sexualidade controlada: os donos de escravos estimulavam a geração de filhos para manutenção do sistema.

A autora aponta que, na transição do trabalho escravo para o trabalho livre, muitas mulheres negras se tornaram domésticas – uma profissão em que, ao morar na casa dos patrões, era preciso abandonar sua família para cuidar de outra, em uma posição de subordinação e silêncio. Nesse emprego, havia um paradoxo: muitas trabalhadoras criavam laços com as crianças de que cuidavam, mas ao mesmo tempo sabiam que jamais fariam parte de suas famílias brancas. Hill Collins afirma que essa relação criou o lugar social da outsider interna, perspectiva que se repetiria em muitos outros aspectos das vidas de afro-americanas.

Como outsiders, as mulheres negras são vistas como o “Outro” na sociedade – segundo a autora, parte de um pensamento binário que classifica pessoas e coisas de acordo com suas diferenças: branco/preto, masculino/feminino, razão/emoção. Nesse binarismo, esses conceitos invariavelmente implicam em relações de inferioridade e superioridade – como, por exemplo, afirmar que um homem é superior a uma mulher, ou que a razão supera a emoção. “As afro-americanas ocupam uma posição na qual há um paralelismo entre as partes inferiores de uma série desses binarismos, e essa situação tem sido fundamental para manter nossa condição subordinada”, escreve Hill Collins. Uma forma de manter essa subordinação é a criação de imagens de controle, estereótipos que permeiam as relações de poder nos EUA desde a escravidão. Uma figura comum é a da mammy: a serviçal fiel e obediente, que cuida de seus “filhos” brancos como se fossem seus. Este arquétipo é até hoje reproduzido em livros, filmes e marcas comerciais. 

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Qual o futuro, então, para as mulheres negras? Hill Collins defende uma “política de empoderamento”. Ela cita a feminista brasileira Sueli Carneiro, que afirma: “Para fazer a diferença na vida das mulheres negras brasileiras, temos de fazer mais que simplesmente esperar por um futuro melhor. O que temos de fazer é nos organizar e nunca parar de questionar. O que temos de fazer, como sempre, é trabalhar muito”. Aqui, a ênfase é no “trabalhar muito”. Para a autora, o empoderamento “exige mudar as injustas instituições sociais com que os afro-americanos vêm deparando de geração em geração”.

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