Peça inédita de Haroldo de Campos revela tendência ao humor

'Graal: Legenda de um Cálice' foi escrita quando o poeta e tradutor tinha apenas 23 anos

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Por Sérgio Medeiros
Atualização:
O escritor e tradutor brasileiro Haroldo de Campos Foto: Robson Fernandes/Estadão

Fausto e seu medonho comparsa têm direito a todas as reencarnações. Essa sentença que Paul Valéry colocou na abertura do Meu Fausto vale ser lembrada por ocasião do lançamento de uma peça inédita de Haroldo de Campos (1929-2003), escrita em 1952: Graal, Legenda de um Cálice

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Na peça, o medonho Mefistófeles se apresenta diante de um arquivista mergulhado em papéis, o qual atende pelo nome de Graal, taça que representa, como se sabe, o Cristo morto pelos homens. Assim como o hilário personagem Humpty Dumpty, de Lewis Carroll, cujo nome tinha sua forma física (um ovo), também o arquivista de Haroldo de Campos, que aspira a ser poeta ou a viver como poeta, não hesita em se declarar um cálice. Numa de suas falas, afirma: “Graal... O meu nome é estranho, não achas? É como um cálice, como o ápice de um cristal cuja base a jaça começou a roer. Como um sangue aquilino.” 

Antes disso, o coro dos iguais já havia proclamado: “Seu nome será Graal, por ser o mais puro, e conter sua força em dois aa, como o sangue nas aurículas do coração.” Aos 23 anos, Haroldo de Campos já se mostrava muito interessado no valor literário do som e da forma das palavras, anunciando, por assim dizer, de uma maneira leve e saborosa o rigoroso concretismo poético que só seria batizado e desenvolvido depois. 

Portanto, o Santo Graal que recolheu o sangue do Senhor é o ponto de partida desta recriação satírica de duas lendas medievais. Na peça, o jovem Haroldo de Campos põe frente a frente, sem qualquer pudor, o “divino” cálice, um objeto maravilhoso, e o Príncipe do Inferno, aquele que odeia a luz. Este dirá ao primeiro: “De que te serve esse nome! Um cálice. Quebra-o. Não te doem os lábios de bebê-lo sempre?” 

Enquanto Goethe, outra referência poética importante, transformou o personagem medieval de Mefistófeles em um símbolo metafísico, o poeta paulistano, sob evidente influxo corrosivo de Oswald de Andrade, cujas peças parece estar todo o tempo citando, o devolve ao seu “estado de fantoche”, como disse Valéry ao comentar sua origem na feira popular. Chamado de Todaluz, e também de Luciphalus, o Príncipe do Inferno não consegue comprar a alma de Graal, o futuro poeta, uma criança eternamente envelhecida que ainda não assumiu sua maturidade e mal consegue emergir da papelada burocrática que a sufoca. 

Quando tenta seduzir o poeta, Todaluz diz versos como: “Olha aquelas mulheres que se comportam como rios de nylon”, usando uma linguagem poética adequada ao contexto. E acrescenta, fazendo uso exuberante das palavras: “As púrpuras lourabranca amêndoa amara bétula tâmara anis mulheres. És um solitário, não é?” Mas a resposta que ouve do poeta é que ele está decidido a ficar com seu nome: “É uma taça. Seu cristal cola-se a meu lábio como uma pele de vidro.”

Quando, vencido, Todaluz decide retirar-se, diz uma das frases mais reveladoras da peça: “Ele não me serviu, mas não importa. Ao menos tem senso de humor.” E é verdade: a maior qualidade dessa obra póstuma de Haroldo de Campos, que se propõe a compor um retrato do artista na era tecnológica, entre imagens medievais estáticas e as formas em movimento do cinema, ao som contínuo de máquinas de escrever “tricotando o seu choro”, é seu humor, o qual não perdeu a graça e a virulência. 

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Diria que nunca mais o poeta conseguiu escrever algo tão jovial e cômico. Não por acaso o texto é classificado por ele como “Bufotragédia mefistofáustica ou Mefistofarsa bufotrágica”, na linhagem de Jarry e Maiakovski. 

Tudo termina com Graal e sua musa, Áurea, vivendo o amor-paixão e dizendo “sim”, à maneira de Molly Bloom, a heroína de Ulisses, de James Joyce, quando reencontra o amado ao amanhecer. Após o primeiro sim do novo casal, vem um poema em que as palavras estão espaçadas ou quebradas, poema que reaparecerá, aliás, quase idêntico, em “o â mago do ô mega”, obra posterior publicada em vida: “aurifer / oz:e / foz / paz / os / CIO / SIM!”. Antes da declamação desse poema, Graal já havia anunciando uma nova modalidade de poesia que Haroldo de Campos iria praticar de forma sistemática a seguir: “Meu processo se chama: a decomposição do átomo-verbo.” 

Integram a edição da peça quatro ensaios, assinados por Claudio Daniel, Jacó Guinsburg, Lucio Agra e Carlos Antônio Rahal, que é o organizador do volume. Este inclui um revelador fac-símile do datiloscrito da peça. Nos referidos ensaios, lemos, por exemplo, que Graal é um laboratório de textos, uma reunião de temas ainda na forma de rascunho, apresentando-se, no conjunto, como uma alegoria antropofágica, e que a busca mística ou psicológica, inerente às lendas medievais que lhe servem de base, cedeu lugar a outra demanda, mais terrena, de amor e poesia. Trazendo à tona a lição de Oswald de Andrade, poderíamos concluir que, para o jovem Haroldo de Campos, amor é humor.

*Sérgio Medeiros é poeta, dramaturgo e ensaísta. Publicou, entre outros livros, 'A Idolatria Poética ou a Febre de Imagens' (Poesia) e 'As Emas do General Stroessner' (Teatro), ambos pela editora Iluminuras 

Capa do livro 'Graal: Legenda de um Cálice', de Haroldo de Campos 

Graal: Legenda de um Cálice Autor: Haroldo de CamposEditora: Perspectiva 112 páginas R$ 35

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