Peça nos EUA é protagonizada por atores com síndrome de Down

Jamie Brewer e Edward Barbanell são os primeiros portadores de Down a ter papéis principais em uma peça de grande porte no país

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Por Sopan Deb
Atualização:

No final de 2015, a dramaturga Lindsey Ferrentino e a atriz Jamie Brewer assistiram a um clipe de Donald Trump, na época candidato, zombando de uma repórter com deficiência física. Elas ficaram horrorizadas, o que tornou a peça que estavam escrevendo, focada numa personagem com síndrome de Down, muito mais importante. “Desse momento em diante, a peça passou a ter um novo significado para mim”, disse Lindsey.

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A atriz Jamie Brewer na série 'American Horror Story' Foto: FX

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A peça, Amy and the Orphans (Amy e os Órfãos), que estreia em 1 de março no Laura Pels Theater, numa produção da Roundabout Theater Company, é um espetáculo que rompe barreiras. Jamie Brewer, 33 anos, e Edward Barbanell, 40 anos, são os únicos artistas conhecidos nos EUA com síndrome de Down a interpretar protagonistas em uma peça de teatro, na Broadway ou fora dela.

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A peça é sobre três irmãos que se reúnem após a morte do pai e a viagem que ocorre em seguida. Lindsey Ferrentino, que estreou no teatro com a peça aclamada pela crítica, Ugly Lies the Bone, em 2015, foi insistente no sentido de que o papel principal fosse interpretado por alguém com a deficiência, deixando uma nota no primeiro rascunho do roteiro: “Achar um ator talentoso com síndrome de Down não é difícil. Portanto, façam isso.”

Jamie Brewer é uma atriz veterana conhecida por seu trabalho na série de TV American Horror Story. Edward Barbanell, que faz o papel de Eddie, interpretou Billy no filme The Ringer, de 2005, estrelado por Johnny Knoxville. Ele e Jamie Brewer trabalham em teatro há muito tempo. Mas assumir um papel tão importante e de primeiro plano é um desafio totalmente novo.

“O maior obstáculo é o volume de diálogos e a direção de palco, tudo ao mesmo tempo”, diz Gail Williamson, agente de Brewer e conhecido defensor dos artistas com deficiência. “Quando você faz um programa de TV ou filme, tem uma cena e trabalha em cima dela. No teatro, você tem de dominar tudo de uma vez.”

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No local dos ensaios, Jamie repassava os diálogos com membros do elenco, Debra Monk, Mark Blum e Vanessa Aspillada. Na cena, Amy, usando fones de ouvido cor de rosa enquanto assiste a um filme em seu tablet, recebe a vista dos irmãos, interpretados por Debra e Mark. Vanessa Aspillaga interpreta uma cuidadora. A cada cinco minutos, depois do início de uma cena, o diretor da peça, Scott Ellis, interrompia para fazer comentários e alguns ajustes. “Vire desta maneira”, “Caminhe assim”, “Reaja mais”.

As paradas e os inícios eram especialmente importantes para Jamie. Quando mais repetia a cena mais fácil era a memorização e mais as cenas eram inculcadas na memória muscular.

“Excelente, Jamie”, disse Ellis. “Vamos repetir mais uma vez.”

Uma nova pausa, mais direção e novo ensaio. Scott Ellis procura incentivar o elenco, ao passo que Lindsey Ferrentino, sentada ao lado dele, toma notas. Ocasionalmente sussurra alguma coisa. Durante todo o ensaio, Jamie fazia piadas. Barbanell observava tranquilamente.

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A peça se baseava na tia de Lindsey, Amy Jacobs, já falecida e que tinha síndrome de Down. Quando começou a escrever o roteiro, o processo ficou complicado diante da capacidade verbal limitada da tia, o que tornava os diálogos um desafio. Em 2015 ela recorreu a Williamson, cuja lista inteira de clientes é constituída de atores com deficiência. Williamson colocou-a em contato com Jamie Brewer, que tinha sido a primeira pessoa com síndrome de Down a desfilar na New York Fashion Week. As duas se reuniram para um café e imediatamente se tornaram amigas.

Jamie disse a Lindsey que quando interpretava personagens com síndrome de Down tinha de atender às expectativa do público independente das suas habilidades. Imediatamente Lindsey decidiu que a peça seria muito mais sobre ela do que sobre sua tia. “Foi com base nessa conversa que escrevi a peça”, disse Lindsey. Ela quis dar a Jamie espaço “como atriz e como pessoa, uma chance para sair daquele papel e mostrar ao público o que ela é realmente”.

Jamie, filha única, cresceu no condado de Orange, na Califórnia, e mais tarde mudou-se para Houston onde começou a fazer teatro. Começou a trabalhar como atriz quando estava no oitavo ano da escola, com a ajuda da família.

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“Indivíduos com deficiência têm maneiras diferentes de lidar com o problema”, disse ela. E a sua maneira foi mergulhar nas artes, como sua personagem, que tem de enfrentar a morte do pai.

Depois da peça escrita, o trabalho foi encontrar um coadjuvante para Jamie. Williamson colocou Lindsey em contato com Barbanell, que vivia em Coral Springs, na Flórida.

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Para o primeiro encontro, Ferrentino pediu a ele para não preparar nada; ela queria apenas encontrar-se com ele. Mas ele, acompanhado da mãe, veio preparado com cenas de Sonho de uma Noite de Verão, Júlio César, Henrique V e Romeu e Julieta. No jantar, insistiu em mostrar suas habilidades a ela. E conseguiu convencê-la.

“Ele interpretou Shakespeare da maneira mais bela, o texto correto”, disse Lindsey. E em vez de encontrar outra Amy, ela decidiu que de vez em quando ele se apresentaria assumindo o papel principal e a peça seria Andy and the Orphans, com algumas cenas reescritas para um personagem masculino.

No primeiro dia de ensaio do elenco no Laura Pels Theater, Barbanell, incentivado por Jamie e Lindsey, entusiasticamente interpretou a cena do balcão de Romeu e Julieta.

O incentivo para o elenco não falta, observou Barbanell. “Como tenho síndrome de Down, às vezes estou no alto, outras vezes em baixo. Sou como um elevador e eles me fizeram subir”, referindo-se a Lindsey e Scott Ellis.

Defender as pessoas com deficiência é um papel que Jamie Brewer e Edward Barbanell levam a sério. Ambos querem abrir portas e mudar comportamentos. Edward disse que trabalhou como ajudante de garçom em um centro de ajuda e constantemente ouvia os colegas dando apelidos jocosos para pessoas deficientes.

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Quando soube que estava no elenco de Amy and the Orphans ele deixou uma mensagem aos colegas na saída do centro: “Dêem uma olhada em mim agora”. / Tradução de Terezinha Martino 

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