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Peça usa Adam Smith para abordar dilemas americanos

'The Low Road’ discute dilema entre o egoísmo liberal próprio do mercado e a generosidade do puritanismo

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Por Redação
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Não é fácil dramatizar o conflito existente no âmago dos ideais econômicos americanos, mas isso pode ser feito – e entretendo A estranha e tumultuada economia dos últimos anos levou ao palco inúmeras peças de reflexão sobre o tema. Entretanto, a maioria delas, como Sweat, de Lynn Nottage, sobre operários de Reading, Pensilvânia, ganhadora do Pulitzer; e Kings, de Sarah Burgess, que aborda as sórdidas maquinações de lobistas políticos de Washington (em cartaz no Public Theatre, de Nova York, até 1.º de abril), segue uma comportada abordagem antropológica. É como se os dramaturgos de repente se sentissem compelidos a sair de seus enclaves litorâneos liberais para conhecer mais as pessoas que estão virando manchete e tornando as eleições imprevisíveis. O efeito é mais didático que mobilizador, mais formal que dramático.

Cena da peça 'The Low Road' Foto:

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Isso torna The Low Road, que estreia no Public Theatre em 8 de abril, especialmente revigorante. Embora a peça seja ambientada na América colonial do século 18, sua pegada satírica é atemporal. A peça trata das picarescas aventuras de um jovem chamado Jim Trewitt, que entra na vida abandonado na porta de um bordel e acaba por se tornar um bem-sucedido homem de negócios. Em sua trajetória para o sucesso, Trewitt dá o golpe em prostitutas (diz que está investindo o dinheiro delas), compra um escravo e roupas transadas e reivindica a herança do milionário que supõe ser seu pai. Nesse meio tempo ele é roubado (perde quase tudo, só fica com o escravo), recebe ajuda de uma altruísta congregação de puritanos, quase é assassinado por mercenários alemães e é enganado por um simpático aristocrata. Trewitt cuida sempre primeiro de si. Ainda garoto, lera por acaso em um manuscrito de Adam Smith, o pai do livre mercado, uma passagem exaltando o valor do interesse próprio. “Deus ajuda quem se ajuda”, ensina Trewitt aos generosos e ingênuos puritanos.

No mundo esquerdista do teatro, em que quase todos trabalham de graça e a maioria dos dramaturgos vive preocupada com o aluguel, peças sobre negócios se destacam com a sutileza de uma tuba. Não é preciso muito para se descobrir nelas o dedo do vilão. The Low Road não foge ao padrão. Trewitt é um egoísta rematado. Mas a peça é inteligente e engraçada demais para sucumbir ao clichê. Ela pode fustigar o capitalismo, mas também desanca clichês de esquerda, provoca sutilmente a plateia e não propõe soluções realistas. O melhor, porém, é que The Low Road – com 17 atores se desdobrando em mais de 50 papéis numa produção agitada e divertida, dirigida por Michael Greif – é entretenimento de primeira.

O texto é de Bruce Norris, dramaturgo americano conhecido por não fugir de temas espinhosos. Sua peça Clybourne Park, de 2010, premiada com um Tony e um Pulitzer, tem como base a gentrificação. Em The Low Road, encomendada originalmente pelo Royal Court Theater, de Londres (onde estreou em 2013), Norris diz que se inspirou nas conversas sobre as maravilhas do livre mercado que dominaram a eleição presidencial americana de 2012 – a qual se seguiu ao colapso do Lehman Brothers e à consequente Grande Recessão ali iniciada. “Ficávamos repisando aquelas platitudes idiotas sobre a grandeza do mercado”, lembra Norris. “Paul Ryan, especialmente, estava me dando nos nervos. Ele é um ideólogo fanático de uma noção baseada em Milton Friedman e Ayn Rand de que o mercado é perfeito. Tem essa lastimável convicção tão arraigada que a coloca acima da razão.

Não é difícil perceber a frustração de Norris com essa oportunista amnésia econômica no personagem de Trewitt (que originalmente se chamava Trumpett, até que a eleição de 2016 deixou esse nome óbvio demais). O Adam Smith adotado por Trewitt não leva em conta o caráter generoso e nuançado da obra do economista escocês (descuido, aliás, muito comum). É antes um “Adam Smith dos sonhos de Paul Ryan”, como se as teorias econômicas de Smith pudessem ser reduzidas a um simples parágrafo justificando por que o comportamento egoísta ajuda o interesse público. Como narrador da peça, o próprio Smith (interpretado por Daniel Davis) parece sentir um certo desgosto durante um dos abrangentes discursos de Trewitt sobre os benefícios da “mão invisível” do mercado – como se o economista subitamente se desse conta de como está sendo mal compreendido. 

O que deixa a peça mais atraente que polêmica é também o modo como Norris fustiga convicções que acredita arraigadas na da plateia. Durante um jantar aristocrático, um debate sobre uma ordem econômica mais justa e a possibilidade de ensino público leva uma senhora a perguntar: “E se tivéssemos um sistema para crianças mais inteligentes e outro, menos exigente, para as demais?” A ideia deve soar familiar até a nova-iorquinos mais progressistas, assinala Norris. “Em meu mundinho liberal de Nova York, reciclamos embalagens plásticas e compramos produtos orgânicos em mercearias da moda. Ao mesmo tempo, vivemos perto de gente que mal tem o que comer, mas fugimos do assunto.” Norris também zomba de dramaturgos que têm a pretensão de que suas peças possam mudar as coisas. John Blanke (Chukwudi Iwuji), o elegante e educado escravo de Trewitt, diz do teatro: “Se o queremos são mudanças políticas, uma peça não seria o modo mais ineficaz possível de se chegar a elas?” 

The Low Road é uma história americana sem paralelos. No centro dela estão “duas ideias esquizofrênicas sobre cultura americana”, diz Norris. Por um lado, existe um certo desdém libertário em relação ao governo e a convicção de que cada um é livre para buscar os próprios interesses; por outro, há a herança do puritanismo, que vê os americanos não apenas como indivíduos, mas como cidadãos obrigados, de certa forma, a se ajudarem uns aos outros. “Como são ideias irreconciliáveis, vivemos em eterno conflito neste país”, afirma Norris. Ele acrescenta que essa tensão fundamental entre direitos e obrigações, entre se dar bem e ser justo, pode ter passado meio despercebida para o público britânico, que em sua maioria já aceitou obrigações como pagar impostos para que o país possa ter um serviço nacional de saúde. “Já nos Estados Unidos, não se pode nem exigir de alguém que registre sua arma porque isso seria ir contra seus direitos.”

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Apesar das gargalhadas que provoca, a peça é pessimista. A ideia de Trewitt de perfeição do mercado pode ser de um egoísmo caricato, mas o altruísmo dos puritanos também não se sai bem. A ânsia de doar sua riqueza aos menos afortunados mostra que não estão para uma emergência fatal, que deixa todos mortos. Talvez, sugere Norris, a humanidade esteja condenada, já que as pessoas parecem mais propensas a competir que a cooperar. “Acho que esse nosso problema de personalidade jamais será resolvido”, conclui. “Como primatas, queremos duas bananas quando os demais só têm uma. Não buscamos igualdade: queremos parecer iguais, mas com uma banana extra.” / Tradução de Roberto Muniz 

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