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Pegaram o bad man vestido like a girl

Prisão do traficante jamaicano Dudus Coke revela a farsa trágica do Paraíso de Bob Marley

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Por Redação
Atualização:

A caçada sangrenta que durou cinco semanas, exigiu a decretação de estado de emergência na Jamaica e vitimou dezenas de pessoas, entre civis, policiais, militares e membros de gangues criminosas, terminou de maneira inusitada na terça-feira. O elemento – homem mais temido do país, acusado de tráfico de armas e drogas, apesar de idolatrado na vizinhança pobre de Tivoli Gardens – teria sido preso dentro de um automóvel conduzido pelo reverendo Al Miller, popular líder religioso da capital, Kingston. Ostentava, juram as autoridades locais que se apressaram em divulgar a foto, uma peruca de mulher enfiada num boné de beisebol. No banco de trás, outra peruca – de cor pink – e um par de óculos femininos igualmente chamativos.

 

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“Estamos chocados”, tripudiou, aos risos, um policial ouvido pelo tabloide Jamaica Observer. “Talvez seja por isso que ele conseguiu se esconder por tanto tempo, estávamos à procura de um homem que na verdade era uma mulher!” Ha, ha. Rei morto, rei posto. Mas a piada não tinha tanta graça em meados de maio, quando o governo do primeiro-ministro Bruce Golding finalmente cedeu à pressão de Washington para prender e extraditar Christopher “Dudus” Coke e levá-lo a julgamento nos EUA, onde é considerado uma versão jamaicana do traficante colombiano Pablo Escobar e corre o risco de pegar prisão perpétua. Os moradores de Tivoli Gardens, para quem Dudus está mais para o Robin Hood do Caribe, ergueram barricadas nas ruas e criaram tal instabilidade que obrigou Golding a decretar estado de emergência na ilha idílica de Bob Marley e dos resorts all-inclusive.

 

Como resumiu Robert Mackey, blogueiro do New York Times, na sexta-feira, um dia depois da chegada do prisioneiro aos EUA, “em questão de semanas, Coke passou de mais temido líder de gangues e homem forte na Jamaica para motivo de escárnio e ridículo”. Levantou dúvidas se a própria polícia jamaicana não o teria vestido daquela forma. E citou o comentário do poeta e novelista jamaicano Kei Miller, para quem a novela da prisão de Dudus fez lembrar o antigo reggae Bad Man Nuh Dress Like Girl, de Harry Toddler, hit na ilha nos anos 90.

 

Embora o primeiro-ministro Golding tivesse que ir à TV em rede nacional para justificar que estava “sob grande pressão” ao concordar com o pedido dos EUA, o enredo acima não se limita à necessidade de desmoralização de um personagem polêmico, porém popular, no país. O premiê foi acusado de fazer corpo mole e até de contratar lobistas em Washington para dissuadir o governo norte-americano da extradição por causa das relações pessoais que mantinha com o acusado. “A ligação entre o partido de Golding, o Jamaica Labour Party (JLP), com a comunidade de ‘dons’, como a família Coke, é historicamente forte”, disse ao Aliás Jon Silverman, professor da Universidade de Bedfordshire, na Inglaterra.

 

Cúmplices na política e no crime. Os “dons”, como são conhecidos os líderes de gangues dos bairros degradados de Kingston, seriam úteis para angariar votos nessas comunidades e receberiam em troca proteção e poder de intermediar os parcos serviços públicos prestados pelo Estado. Autor de Crack of Doom (1994), livro clássico sobre o mundo do crime em Kingston, Silverman diz que o “acordo político” remonta a uma geração: Lester Lloyd Coke, conhecido como “Jim Brown”, pai de Dudus, também apoiou o antigo premiê jamaicano pelo JLP, Edward Seaga. Que, assim como Golding, tinha pouco interesse em entregar “um dos seus” para os americanos.

 

De forma semelhante, dom Jim Brown caiu em desgraça ao ter um pedido de extradição feito pela Justiça americana. Sua sorte, no entanto, foi ainda pior que a do filho. Em 1992, enquanto aguardava preso sua remoção para os EUA, morreu carbonizado na cela, num mal explicado incêndio, com cara de queima de arquivo. “Em duas versões igualmente plausíveis, Brown teria sido morto pelos colegas do JLP ou pelos rivais do PNP People’s National Party, agremiação partidária rival, por ter muita informação sobre ambos”, especula o professor Silverman, afirmando crer na segunda hipótese. O vínculo entre Brown e Seaga era tão às claras que o premiê não hesitou em comparecer aos funerais do capo. Algo como se o presidente do Brasil fizesse uma visita de cortesia a Fernandinho Beira-Mar ou Marcola.

 

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Dudus cresceu nas ruas de Tivoli Gardens no auge da dinastia Coke. Embora o sucessor previsto para o pai fosse seu irmão mais velho, Mark, ele assumiu o trono depois que o primogênito foi assassinado. E, embora tenha construído um verdadeiro império econômico e fosse descrito por muitos como alguém capaz de destruir quem quer que se colocasse a sua frente, Dudus seria apenas “uma pessoa justa, avessa ao uso da violência, cuja principal atividade era trazer o desenvolvimento econômico para os jovens de sua comunidade”, na visão do advogado da família, Tom Tavares-Finson.

 

Violência e democracia

 

O cenário como está montado na Jamaica hoje aponta para um problema maior que a incapacidade do governo em garantir segurança básica a seus cidadãos: um link entre a violência e a própria democracia. É a opinião do professor do Departamento de Sociologia da Universidade Harvard, Orlando Patterson. Em artigo publicado no final de maio no NYT, Patterson pôs em xeque a ideia segundo a qual as democracias são necessariamente eficazes na mediação de conflitos em sociedades tão cindidas e desiguais como a jamaicana.

 

“Ainda que a Jamaica tenha, por méritos próprios, construído uma democracia robusta pelos padrões internacionais, que apesar das tensões em períodos eleitorais as apurações sejam justas e haja alternância de poder, que seu Judiciário seja relativamente honesto e independente, que haja liberdade de imprensa e uma sociedade civil de grande vitalidade, o grau de violência do país salta aos olhos de muitos como uma anomalia”, escreveu Patterson. Entre as razões, o professor cita a dificuldade de impor a ordem em comparação com os regimes autoritários e a vulnerabilidade das democracias novas em lidar com conflitos étnicos ou o crime organizado. Exemplos disso seriam, diz o professor, a maior criminalidade da Índia em comparação com a China, a violência crescente nas ex-repúblicas soviéticas, a situação nas ruas da África do Sul após o fim do apartheid e até a piora da segurança no Brasil de 1985, pós-regime militar, até hoje.

 

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Para Patterson, o arco da “paz democrática” tem forma de U, piora para depois melhorar: “É apenas quando tais países se aproximam da maturidade democrática que a violência social declina rapidamente”. E cita que, após um curto período de euforia e progresso depois da independência da Inglaterra, em 1962, a Jamaica foi atingida em cheio pela crise do petróleo em 1973. Vieram duas décadas de declínio econômico e o governo, enfraquecido, se aproximou das gangues com a intenção de manipulá-las eleitoralmente. “Políticos criaram esses ‘dons’, que se tornaram monstros incontroláveis, pois o dinheiro hoje não está mais na política, mas nas drogas”, resumiu o escritor jamaicano Marlon James, em entrevista à revista americana Foreign Policy.

 

Para Jon Silverman, se por um lado a extradição de Christopher Dudus Coke é uma vitória para Obama, interessado em flexionar seus músculos políticos para fazer frente à war on drugs do antecessor George W. Bush, por outro pouca mudança se pode esperar na Jamaica. “O país continua sendo muito pobre, com uma polícia e um Exército brutais. Por muito tempo ainda o povo de guetos como Tivoli, Southside e Arnett Gardens terá mais confiança em seus ‘protetores’ do que em gente como Bruce Golding.”

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