Pepe resolve

Ao receber ex-presos de Guantánamo, o então presidente do Uruguai aumentou a relevância de seu país e ganhou pontos com os EUA - sem deixar de cobrar o fim da prisão americana

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Por Laura Waisbich
Atualização:

“Vocês poderiam me dar uma mão?” Foi assim que o presidente uruguaio José ¨Pepe” Mujica introduziu, por telefone, o assunto da acolhida de ex-prisioneiros de Guantánamo a seus companheiros de estrada, dirigentes da central uruguaia de trabalhadores. Havia meses o presidente estava convencido de que seu país deveria se envolver na transferência dos detidos que os Estados Unidos mantêm na ilha cubana. Um gesto humanitário, segundo ele, para “ajudar a pôr um fim a uma das maiores aberrações do continente”. Para entender melhor como Mujica operacionalizou a iniciativa, em meados de fevereiro fui a Montevidéu, em missão da Conectas, onde encontrei alguns dos que se envolveram no processo.

Em dezembro de 2014, um acordo de transferência entre o Uruguai e o governo americano permitiu que seis homens na condição de refugiados desembarcassem na capital uruguaia: Ahmed, Ali, Dihab, Abd, Abdul e Mohammed. Quatro sírios, um tunisiano e um palestino. Todos estiveram detidos por mais de uma década, sem acusação formal por qualquer crime contra os Estados Unidos. Anos de investigações não conseguiram encontrar nada contra eles, que tiveram suas fichas examinadas e limpas em 2010, depois de um processo de “revisão de status” que envolveu órgãos como os Departamentos de Defesa e de Justiça, a CIA (a agência de inteligência americana), o FBI (Agência Federal de Investigação) e a Casa Branca. Mesmo com transferência recomendada logo em seguida, eles permaneceram detidos por mais quatro anos. 

Após entregar o governo ao sucessor e sempre sem gravata, Mujica embarca no eterno Volkswagen Foto: Carlos Pazos/Reuters

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“Vieram amarrados e vendados e quando abriram os olhos a primeira coisa que seus olhos libertos viram foi o Uruguai.” Assim a chegada me foi descrita, em duas ocasiões e com sorrisos orgulhosos nos rostos de meus interlocutores, um alto funcionário da presidência e um dirigente sindical. A negociação da transferência se deu de maneira discreta e quase exclusivamente no círculo mais próximo ao presidente: o chanceler, alguns poucos líderes da Frente Amplia (coalização de partidos de esquerda, hoje base do governo) e poucas outras figuras de confiança de Mujica. 

A notícia veio a público em março de 2014, em pleno período pré-eleitoral. Previsivelmente, o debate foi crispado e cresceu de importância na mídia sem que o governo estivesse preparado para a guerra de informações. O debate se polarizou. De um lado, argumentos como “é preciso prestar solidariedade, recebê-los” e “são os desaparecidos políticos do século 21”. De outro, contrário a sua vinda, ponderações como “se estavam lá é porque devem ser perigosos” ou “já temos muitos problemas internos para nos ocuparmos de mais um”. 

Como bem lembrou o ex-secretário dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi, em artigo recentemente publicado no Brasil, “é zero a chance de os militares norte-americanos libertarem presos sobre os quais pairasse a menor suspeita de envolvimento com organizações terroristas”. A cúpula de Mujica sabia disso e, mesmo assim, fez as próprias investigações antes de decidir trazê-los para o Uruguai. 

Ainda em março, a Institución Nacional de Derechos Humanos y Defensoría del Pueblo lançou um comunicado em apoio à iniciativa, com a condição de que os ex-detidos viessem como homens livres e segundo as leis uruguaias de refúgio e asilo. Outras organizações de defesa de direitos também vocalizaram apoio. Os partidos de oposição foram contrários, desvirtuando o alinhamento histórico da direita latino-americana com as políticas dos Estados Unidos. Alguns veículos de mídia entraram na campanha ajudando a construir um perfil negativo “daqueles que estão em Guantánamo”. A Igreja, por sua vez, optou pelo apoio silencioso. 

Nos meses que se seguiram, as eleições presidenciais ocuparam o debate público e, em novembro, venceu o candidato governista, Tabaré Vázquez. No mês seguinte chegaram os refugiados de Guantánamo. E chegaram sem que houvesse uma estrutura e um plano de ação oficiais, inclusive em termos de recursos humanos e financeiros para levar a cabo o processo de instalação e integração. Chegaram porque alguns uruguaios se dispuseram a ajudar a libertar uns quantos de Guantánamo. “Chegaram à la Mujica”, como me foi dito numa ocasião, ou seja, de impulso. A expressão traduz o caldo de vontade política e esforços individuais que fez a transferência acontecer.

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Um dos primeiros a abrir os braços foi o PIT-CNT (Plenario Intersindical de Trabajadores - Convención Nacional de Trabajadores, a central sindical do Uruguai). “Neste país, os sindicalistas sabem o que significa uma prisão”, me disse um deles. Ficaram responsáveis pela acolhida inicial, de dois meses. À frente dessa tarefa nada convencional para um sindicalista estavam dois Fernandos: Pereira é o coordenador do PIT, Gambera, seu secretário de relações internacionais. 

Depois de passarem uma semana em um hospital militar fazendo múltiplos exames os refugiados foram abrigados - a princípio, todos juntos - em uma casa do próprio sindicato, utilizada anteriormente para abrigar mulheres vítimas de violência doméstica. Os custos com alimentação, higiene e aulas de espanhol foram pagos pelo sindicato, ou seja, com o dinheiro da contribuição dos trabalhadores uruguaios. 

Os sindicalistas acompanharam os refugiados a seus muitos compromissos médicos e terapêuticos. Dihab, por exemplo, chegou ao Uruguai sem poder andar e em estado crítico. Na prisão, ele decidira iniciar uma greve de fome. Foi impedido. Por dois anos, os guardas de Guantánamo alimentaram-no de maneira forçada, por meio de tubos.

O desafio de comunicar-se foi outro obstáculo. Como eles não falam espanhol e ninguém do lado uruguaio, o árabe, a mediação ocorre em inglês, a cargo de um jovem de pouco mais de 20 anos, filho de um dirigente do PIT. Coube também aos Fernandos zelar pela privacidade dos refugiados. Foram filtros e interlocutores entre eles e a sociedade e, sobretudo, a mídia. Nem sempre conseguiram e muitas coisas vazaram. Ironicamente, talvez esses vazamentos tenham humanizado os refugiados. O fato é que, aos poucos, a percepção da sociedade uruguaia sobre eles tornou-se bastante positiva.

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Se na campanha eleitoral o tema gerava polêmica, esta diminuiu bastante após a chegada do grupo, com quase nenhuma voz questionando o acolhimento. Prova maior veio dos vizinhos. No dia em que souberam da chegada dos novos moradores do bairro, foram recebê-los com flores da estação e folhas de menta. Alguém havia escutado de outro alguém que lá de onde eles vêm se toma bastante chá de menta. A padaria também enviou uma cesta de pães de presente. 

No processo de integração a uma nova vida, no entanto, nem tudo são flores. Esses são homens que não apenas devem se reacostumar à liberdade em um país distinto, mas com traumas em múltiplos níveis. Não confiam em quase ninguém, nem nos profissionais de saúde que lhes oferecem ajuda. A tortura, frequentemente realizada por médicos, deixou sequelas. 

A partir de março, quem cuidará deles será o Servicio Ecuménico para la Dignidad Humana. A organização trabalha com refúgio desde os tempos da ditadura e, hoje, são os conveniados da Acnur (agência da ONU para refugiados) Uruguai. Seu acordo com a chancelaria uruguaia para cuidar da integração dos seis refugiados durará dois anos. Durante este tempo, os homens receberão uma ajuda financeira de 15 mil pesos por mês (no Uruguai um salário mínimo é de pouco menos de 9 mil pesos) e poderão trazer as famílias para viver com eles. Até o momento, apenas um expressou interesse em trazer mulher e filhos. Os demais, ainda solteiros, e tendo passado importante parte da juventude detidos, desejam apenas recomeçar. 

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A experiência uruguaia na acolhida é particular. Esse é um país em que a escala importa. Ali, as relações interpessoais podem ser determinantes para o rumo da política e das políticas - como neste caso. Mujica e seus apoiadores na empreitada provaram que, do ponto de vista logístico, é possível colaborar para o fim dos abusos cometidos em Guantánamo e para o fechamento dessa prisão fora da lei. As recompensas políticas são várias. O presidente ganhou pontos com os Estados Unidos, aumentou as credenciais do Uruguai como país relevante na região e fortaleceu sua imagem pessoal ao redor do globo. Mujica foi fiel a si mesmo, especialmente quando usou a ocasião para criticar a política americana de luta contra o terror e lembrar que, no futuro, o território ocupado pela prisão deve ser devolvido a Cuba. 

Hoje, Guantánamo ainda abriga 122 homens, a maioria de nacionalidade iemenita. Desses, apenas 17 são considerados “de alto valor” para o governo americano. Quase 60 dos restantes já tiveram sua ficha criminal analisada e revista pelo governo americano: não há e não haverá nenhuma queixa contra eles, apesar de seguirem detidos. 

É consenso entre os que acompanham o caso a percepção de que muitos desses homens acabaram ali por estarem no lugar errado, na hora errada. Ora, muito da - até agora - bem-sucedida acolhida do Uruguai advém do alinhamento improvável desse país ser, para os seis homens, o lugar certo, na hora certa. Um país de imigrantes, com tradição de acolhida de refugiados políticos, governado por um presidente determinado a recebê-los e com uma sociedade disposta a ser solidária. “Vale a pena”, me disse um dos envolvido no processo. Quando perguntado como fazer para convencer os céticos, disse: “Ficam os números. O que são mais seis pessoas, no conjunto de 329 refugiados que hoje vivem no Uruguai, um país de 3,4 milhões de pessoas?”. Não pude deixar de pensar: e o que seriam mais alguns poucos no total de 7,3 mil que hoje estão no Brasil, com 200 milhões de pessoas? 

LAURA WAISBICH É ASSESSORA DE POLÍTICA EXTERNA DA ONG CONECTAS, BACHAREL EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS PELA PUC-SP E MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA PELO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS, SCIENCE PO, EM PARIS

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