Perdidos na estrada Belém-Davos

Crise que agitou dois fóruns mundiais é resultado do descolamento da economia em relação à política, afirma guru da 'sociologia da ação'

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Por Laura Greenalgh e Ivan Marsiglia
Atualização:

O sociólogo francês Alain Touraine, de 83 anos, não fez as malas nem para ir a Davos, na Suíça, para participar do Fórum Econômico Mundial, nem a Belém, no Pará, para estrelar o Fórum Social Mundial. Ou seja, mundo por mundo, preferiu ficar em Paris mesmo. Do ponto de vista das ideias, teria algo importante a dizer em ambos os encontros. Para os apóstolos do mercado financeiro voluptuoso e indomável - uma turma que hoje em dia anda, digamos, na muda - teria a dizer que o jogo virou: o descolamento da economia em relação à política foi de tal ordem nos últimos anos que sistemas financeiros aceleraram rumo ao abismo, gerando a quebradeira geral. "Agora vem o tempo da regulação", profetiza. Para os apaixonados militantes do Fórum Social, o recado seria outro: "Ajeitem seus canais de expressão se quiserem ter influência política. E se despeçam daquele velho antiamericanismo". Acha que os atores sociais poderão assumir um papel fundamental nesta crise, como instâncias de contestação da irracionalidade do mundo financeiro e propulsores dos agentes políticos. "Desde os primórdios da Revolução Industrial a classe política não andava tão por baixo", avalia. Não é de hoje que Alain Touraine fala de controle social sobre a economia. Formado na França, com títulos e especialização em universidades americanas, há quase 50 anos investe na chamada "sociologia da ação", estudando a fundo o itinerário de movimentos sociais em diferentes países. Entre eles, o Brasil. Amigo pessoal do ex-presidente Fernando Henrique, acredita que o País foi beneficiado pela transição da era FHC para a era Lula. "Esses governos formaram uma continuidade salutar", diz. Mas acha que os movimentos sociais brasileiros só avançarão se perceberem que o País hoje é urbano e um dos poucos a ter condições de influenciar a globalização econômica. Diretor de pesquisa da renomada Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, Touraine é autor de clássicos da sociologia moderna, como O Pós-Socialismo e Crítica da Modernidade. Há dois anos surpreendeu ao lançar um estudo sobre a condição feminina, chamado O Mundo das Mulheres. A seguir, os principais momentos da entrevista que concedeu ao Aliás, por telefone: Que imagem Davos traz ao senhor, a do sanatório do livro ?A Montanha Mágica?, de Thomas Mann? (Risos). Como vocês sabem, A Montanha Mágica não foi escrito com um tom de confiança no futuro. Nem mesmo o personagem mais sincero, aberto e simpático do livro, Naphta, apresenta uma visão de esperança no futuro. A Davos de Thomas Mann vivia uma época de esgotamento de um certo modo de vida da Europa Central. A referência aos sanatórios pode aparecer como piada este ano em Davos: afinal, a economia mundial está perdidamente enferma ou há sinais de convalescença? A esta questão é preciso dar uma resposta clara: jamais, desde a 2ª Guerra, houve uma crise tão grave. O sistema econômico sob o qual vivemos, há muito tempo, tem como base a seguinte ideia: concentram-se os recursos nas mãos de uma elite dirigente que deve se voltar para a sociedade, mas, para que a coisa funcione, é preciso ter mecanismos de reequilíbrio e regulação. Porém, o que temos visto do pós-guerra para cá, principalmente em função do desenvolvimento rápido das novas tecnologias, é a ruptura entre essa elite econômico-financeira que se define por ela mesma e os apelos de uma grande massa da população por participar do crescimento da riqueza. Assistimos a uma separação crescente entre a organização econômica globalizada e os sistemas de reequilíbrio político e social, que se tornaram incapazes de atingir o patamar das decisões globais. Mas houve uma grande expansão da riqueza, não? Sim, e ela se deve justamente ao avanço tecnológico e à abertura dos mercados. Porém, após um período inicial de desenvolvimento, o sistema financeiro descolou-se completamente do corpo da economia, para atuar num campo fora das possibilidades de ação social e coletiva, campo este onde ele poderia ser reequilibrado e corrigido. Resultado: mesmo nos EUA a desigualdade social aumentou. Em toda a América Latina ela cresceu muito só em tempos mais recentes países como o Brasil e o Chile lograram diminuí-la. Ocorreu, portanto, uma falha fundamental do capitalismo ou mesmo da economia moderna. É um diagnóstico grave da crise. Sim, é algo muito grave. Trata-se da crise da dominação ocidental. Os países do Ocidente, com os EUA à frente, estão perdendo poder e capacidade de decisão, que está se deslocando para as mãos da Ásia: em primeiro lugar da China, mas também do Japão e da Coreia. Não é só uma crise econômica. Ela é geoeconômica e geopolítica. A era Bush marca o esgotamento do modelo hegemônico dos EUA, que já tinha ficado evidente na compra, em enormes quantidades, de bônus do Tesouro americano pelos chineses. Qual é o aspecto mais complicado da crise: a falta de confiança que se generaliza ou a ignorância sobre os meios de combatê-la? Nem uma nem outra. Essa crise não é questão de conhecimento. Não que entendê-la não seja importante, mas ela vem do fato de que estávamos vivendo um período de formidável desenvolvimento financeiro, em que o sistema bancário recebia US$ 1.000 e, a partir da especulação com derivativos, empréstimos e refinanciamentos, punha em circulação para o consumo US$ 6.000 - isso, sem nenhuma materialidade. Hoje, o cidadão americano tem, em média, rendimentos comprometidos na faixa de 140%. Tudo repousa sobre um sistema de papéis sem lastro, que pode levar à quebradeira. Foi o que houve em 2001, na Argentina, quando a situação se agravou tanto que bateu o pânico e todo mundo correu aos bancos para resgatar seu dinheiro. Em poucos meses a Argentina passou de país que tinha a mais forte classe média da América Latina para um lugar onde multidões afluíam dos trens de subúrbio para remexer o lixo no centro de Buenos Aires. Mas se existe algum diagnóstico para as causas do problema, o mesmo não se pode dizer sobre sua solução. Tony Blair disse: "Pergunte aos especialistas o que é preciso fazer neste momento e a resposta mais honesta será: eu não sei". O desnorteio tem sido geral. As ciências sociais e econômicas falham ao lidar com essa situação? Eu não diria isso. Estamos assistindo a mais uma manifestação de um fenômeno que chamo de "marginalização dos atores sociais e políticos". As ciências sociais encontram-se em situação de fraqueza, mas não se trata de um problema de natureza intelectual: trata-se da impossibilidade de os atores sociais intervirem para reequilibrar a sociedade. Com relação aos economistas, a consequência foi direta. Em que sentido? De 25 anos para cá, a ideia predominante sobre o funcionamento da economia foi a da "gestão", não a dos objetivos nacionais e coletivos. Ouvimos repetidamente, a partir do consenso de Washington, que foi aplaudido em Davos inclusive, que era necessário destruir todos os obstáculos ao livre funcionamento do mercado. Os economistas aplicavam cálculos econométricos sobre tudo: sistema financeiro, acumulação de capital, funcionamento do mercado. Para a econometria jamais faltaram recursos... Já a orientação que podemos chamar de pós-keynesiana, a "escola da regulação", o estudo das interações e compensações entre os sistemas econômico e social, isso tudo foi esvaziado. Economistas do mais alto nível protestaram contra essa concepção totalmente desequilibrada. Sem sucesso naquele momento. Vejam bem, não estou dizendo que as pessoas se enganaram, mas que a situação criada conduziu ao fracasso das análises. A ideia de regulação ganha força? Sem dúvida. Ao longo dos últimos 10 ou 20 anos, vimos o tema da ecologia ganhar tanta importância quanto o da economia. E o que é a ecologia senão um sistema de regulação? Trata-se de regular, de um lado, as relações entre cultura e natureza, mas, de outro, trata-se de regular inclusive as relações entre os países, tocando decisões globais importantíssimas como o controle de emissão do CO2 na atmosfera ou a deterioração do clima. Produto disso são as tentativas, inclusive brasileiras, de encontrar novas fontes de energia. O senhor acredita que possa se formar algum novo consenso mundial, algo que venha substituir a formulação do consenso de Washington? Em primeiro lugar, o consenso de Washington não era mundial, mas americano e ocidental. E, honestamente: um consenso neste momento é muito difícil. Estamos vendo, como disse, uma transformação profunda da distribuição da riqueza no mundo. Surgirão novas formas de concorrência, haverá ganhadores e perdedores, mas os grandes grupos econômicos dos países desenvolvidos, ao se sentirem ameaçados, vão se defender contra os interesses dos emergentes. Daí haverá atritos. Os "altermundialistas" reunidos em Belém têm valorizado justamente o discurso ecológico. Qual será, enfim, o papel do ambientalismo no cenário político global? Infelizmente, sobre Belém é preciso dizer coisas opostas. Os temas introduzidos pelos "altermundialistas" no Fórum Social são, de fato, essenciais na tomada de consciência sobre os riscos que o mundo corre. Mas essa gente tem grande dificuldade em organizar suas ações, por uma razão elementar: o adversário contra o qual lutam são as grandes empresas multinacionais, que estão fora de seu alcance. Além disso, parte dos "altermundialistas", em particular os franceses, ainda pratica aquela velha política antiamericana. Felizmente essa ala vem perdendo poder no movimento. O senhor ainda acredita na "ação da sociedade", um dos eixos do seu trabalho em sociologia? Acredito e, ao mesmo tempo, acho que ela tem sido insuficiente. O mercado paira sobre tudo e todos, tem sido muito difícil mudar isso. Só que os fatos estão aí. De repente descobrimos que algumas figuras centrais do sistema financeiro internacional não passam de ladrões e mentirosos: chega a ser espantoso saber que uma fraude bilionária foi praticada nos EUA por Bernie Madoff, o homem que dirigia a Nasdaq, símbolo da economia moderna. É possível encarar a crise como uma oportunidade real de mudança? Basta um passeio no site do Fórum de Davos para perceber que há muita gente buscando soluções paliativas, que permitam a manutenção do sistema... Há três visões em curso em Davos. A primeira diz que é preciso reconstruir apenas as partes do sistema que apresentaram defeito. A segunda, defendida por um batalhão de especialistas sem poder de pressão, é a visão de que é preciso controlar o sistema econômico global. E há uma terceira visão sugerindo que não serão as pessoas, nem as inteligências e nem os governos que vão domar a crise, pois o sistema é capaz de se corrigir sozinho. Esta visão nos remete a um sistema de não-governo, a uma espécie de destino ou de catástrofe anunciada: ninguém pode agir contra o que está aí. Desse ponto de vista, a discussão que Barack Obama traz ao mundo é positiva. Bem-vindo o discurso de que é preciso reforçar o sistema político para que ele possa, de fato, promover a regulação do sistema financeiro-econômico! O senhor compartilha esse grande otimismo em torno de Obama? Será mesmo o retorno à era da política, como dizem alguns analistas? De fato existe um imenso otimismo em torno da eleição de Obama, e sente-se isso em quase todo o mundo. A meu ver, o otimismo é a maneira que as pessoas estão encontrando para expressar essa busca de meios para intervir no presente. Talvez seja esse o retorno à política. A chegada de Obama à presidência americana abre formidáveis perspectivas, porém, se ele é capaz de enfrentar os cataclismas econômicos que devem aparecer, isso não sabemos. O que o senhor acha? Na minha opinião, ele é capaz. Mas leve em conta que Obama não está sucedendo tão somente a um presidente conservador moderado, mas a um homem ultrarreacionário, que alimentou uma inédita predisposição internacional contra os EUA, com ramificações em vários campos, do econômico ao religioso. A herança que lhe deixaram não é fácil. Nos últimos dias, análises publicadas na imprensa internacional acabam por indagar se Obama terá coragem de nacionalizar bancos americanos, ainda que seja temporariamente. Qual é sua opinião? Posso dizer que a resposta já foi dada. Nós estamos vendo a transferência de trilhões não só para instituições financeiras e empresas americanas, mas europeias também. É de se esperar que os governos que fizeram essas transferências venham a ter assento nos conselhos de administração dessas instituições. Isso é lógico, obedece a critérios técnicos, eu diria. E deve acontecer até na indústria automobilística. Estamos rumando para uma situação em que o Estado vai, sim, tomar parte nas decisões do mundo empresarial. Não se trata de saber se Obama terá ou não coragem de nacionalizar, mas de reconhecer o rumo que as coisas já estão tomando. Falemos de desemprego. A cada dia divulgam-se cortes de milhares de postos de trabalho. E não tem saída. Se cai a produção, encolhe o emprego e consequentemente, o consumo. O que posso dizer, de novo, é que estamos sofrendo os efeitos do descolamento da economia em relação à política. Sinceramente não vejo como estancar o desemprego sem promover mudanças profundas no sistema econômico. Não dá para pensar a economia sem levar em conta suas consequências sociais, sem falar de sustentabilidade, sem considerar a ecologia. E era exatamente o que se fazia há dez anos. Agora estamos atravessando um momento da globalização em que os atores sociais serão convocados a se manifestar. Como o internacionalismo sindical, que tende a ganhar força, já que não é mais possível pensar a economia apenas do ponto de vista nacional. Mesmo que a crise venha a ser superada, temos aí as consequências da própria modernização da economia, com saltos tecnológicos que acabam por gerar mais desemprego. Como equilibrar as demandas de trabalhadores ativos e inativos, definir o tamanho da jornada de trabalho, cuidar do lazer das pessoas, etc? Hoje é necessário valorizar o tempo livre da mesma forma que é preciso consertar o processo econômico e estancar o desemprego. Estou seguro disso. Não imagino que estejamos rumando para uma crise como a dos anos 30, nos EUA, em que os desempregados vagavam pelas ruas, mas a situação é muito complexa. Os franceses fecharam acordo para reduzir a jornada de trabalho a 35 horas semana, os alemães, a 36 - isso têm impacto num mercado de trabalho já com muito imigrante. Mas como equilibrar a economia mundializada? Direcionando os avanços técnicos à ideia do desenvolvimento sustentado, e não exclusivamente à competição. Devemos pensar em qualidade de vida, na saúde dos imigrantes, nas possibilidades de entretenimento da população, no nível geral de conhecimento, na formação, no avanço científico. Tudo isso conta. A crise começou financeira, virou econômica, já é social e certamente será política. Estamos caminhando para sistemas políticos mais autoritários e economias protecionistas? Acho que não. Porque também estamos acordando para a ideia de que é preciso ampliar nossa capacidade de intervenção política. Não adianta apenas reforçar partidos e Parlamentos. Claro, eles são importantes e têm sua função no mundo da economia moderna, mas é vital reinventar instâncias de contestação e criar um movimento de opinião pública forte. Aí está a força da política e então volto a pensar nos ambientalistas. Ou nos "altermundialistas" que fazem a crítica à sociedade voltada para o consumo. Acho que já estamos caminhando. O discurso conservacionista vem ganhando espaço, os níveis de consumo no mundo industrializado têm sido discutidos, as condições são propícias para o renascimento da política. Há 40 anos nossa prioridade era o processo de descolonização. Depois embarcamos numa ideia política meio vaga, em torno do Terceiro Mundo, encaramos o autoritarismo, a corrupção, e hoje, diante dos impasses da economia mundial, devemos nos decidir claramente entre a política ou a negação dela. Como decidir? É simples. Sem política, os sistemas econômicos tornam-se desequilibrados. O senhor acompanha o processo político brasileiro há muito tempo. Na sua opinião, como o Brasil deve atravessar esse período de alta turbulência? O Brasil vem se dando bem e deve continuar assim, apesar das dificuldades. O País mudou muito nas últimas quatro presidências e a continuidade Fernando Henrique-Lula, em termos de projeto para o País, foi decisiva. Deu consistência ao processo, ao mesmo tempo em que garantiu a estabilidade política e o rumo econômico. Fez-se um patamar de confiança. Que deve durar? Independentemente de quem venha a ganhar a próxima eleição, haverá essa sensação de que o Brasil continuará seguindo seu caminho. Isso estimula percepções de estabilidade e maturidade de um país que é capaz de controlar a si mesmo. Quando olho para a América Latina, vejo apenas Brasil e Chile em condições de atuar efetivamente no nível mundial. E não estou sequer citando o México, que se tornou um país completamente enquadrado pelos interesses americanos. A redemocratização brasileira também resultou do vigor dos movimentos sociais. Como eles estão hoje: mais fracos, mais fortes, mais cooptados? Tenho duas coisas a dizer. A primeira é que o País mudou muito. Era um país rural, hoje é urbano, sendo São Paulo uma metrópole das maiores do mundo, polo de desenvolvimento global. Então, não dá para pensar em movimentos sociais que se prendam àquele Brasil rural e camponês que já não existe. O senhor fala do MST, que acaba de completar 25 anos? Falo de movimentos que, se ficarem presos ao que já não existe, terão uma posição cada vez mais fraca no sistema político. A segunda coisa que eu teria a dizer é que os movimentos sociais precisam se abrir para o mundo se querem influenciar a classe política. Porque só influenciando os políticos poderão colocar limites aos interesses econômicos. Hoje os atores políticos estão muito enfraquecidos - como nunca estiveram, desde os primórdios da Revolução Industrial. Então será fundamental que atores sociais os empurrem para a frente. Que os façam se deslocar. Além de movimentos sociais mais abertos, precisaremos de Estados mais fortes. Estados que contenham os desequilíbrios da globalização sem cometer desvios autoritários, como acontece na Venezuela, sob Chávez e às custas de uma economia petroleira. O único país que possivelmente pode se deixar influenciar pelo modelo venezuelano é a Bolívia. O Brasil é sábio. Não entra nesse jogo.

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