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Perverso equilíbrio

Discurso oficial e passividade permitem violência policial contra quem não pode reclamar

Por Bruno Paes Manso
Atualização:
'Reich'. Comandante do Batalhão de Choque, coronel Fábio de Souza foi exonerado Foto: EDUARDO NADDAR/O GLOBO

Cinismo: é um dos traços principais no caráter da sociedade brasileira, que garante a persistência dos abusos policiais há mais de 40 anos nas grandes capitais. Somos mestres nessa arte. De um lado, há o discurso oficial das autoridades, aquele que condena com frases feitas e cara de indignação o novo escândalo de truculência e de desvios que veio à tona. “Vamos punir, doa a quem doer.” Não passam de maus atores, encenando seriedade para não encarar a realidade. 

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De outro lado, existe a audiência passiva. Aquela que finge que acredita no script feito sob medida para empulhar. Diante desse teatro, a sociedade garante que tudo permaneça inalterado, um perverso sistema em equilíbrio, sabidamente injusto e reproduzindo suas mazelas contra aqueles que não podem reclamar. Enquanto isso, a realidade continua acontecendo fora do palco, por trás das cortinas.

Até que surge o WhatsApp, insuflando narcisismos de autoridades que se enxergam como intocáveis. Aquilo que antes só era debatido entre iguais, comparsas jogando confetes em rodinhas isoladas, se torna público. Pensamentos vão para o papel e caem na rede. E tudo passa a ficar mais complicado. 

Em setembro, quatro jovens foram mortos dentro de um carro durante uma suposta perseguição feita por policiais na periferia de São Paulo. As autoridades envolvidas na ocorrência justificaram a chacina alegando legítima defesa. Seria mais um caso a cair no esquecimento, se não fosse a tal da vaidade.

Fotos dos corpos baleados foram tiradas por celular na cena do crime e no Instituto Médico Legal, espaços acessíveis somente às autoridades. Instantes depois, essas imagens foram enviadas pelo WhatsApp aos familiares das vítimas, que entraram em choque. Também foram reproduzidas em blogs e redes sociais de apoiadores da polícia. O horror! Horror que, aliás, sempre existiu, mas era quase sempre invisível para aqueles que não moram em bairros pobres. Pelas redes sociais, algumas verdades, reveladas pelos próprios autores dos crimes, começavam a ser esfregadas em nossa cara.

Os diálogos no WhatsApp, em que oficiais da PM do Rio de Janeiro faziam apologia do nazismo e riam da truculência usada contra manifestantes, publicados essa semana pelo repórter Leslie Leitão, também é parte do fenômeno. 

Um major sugere aos colegas o uso de uma técnica de imobilização com um bastão chamado tonfa. O tenente-coronel Fábio Almeida de Souza retruca: “Mata! Assim imobiliza para sempre. Tonfa é o c....! 7.62 (um tipo de fuzil) mata eles tudo”.

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“Na última manifestação q fui dei de AM640 (um lançador de bombas) inferno azul nas costas de um black bobo no máximo 30 metros!!! Que orgulho!!!”, escreveu o coronel. “Coronel Fábio pela instauração do Reich”, respondeu outro policial. 

Diante do escândalo, o secretário de segurança do Rio se disse “horrorizado”. Sério? Por que, então, antes, não havia repreendido, punido ou pelo menos criticado a truculência policial? Não faltavam imagens no YouTube. Em São Paulo, Ceará, Minas Gerais, Brasília, se passou o mesmo. Policiais visivelmente despreparados, apostando no “poder pedagógico” do cassetete e das balas de borracha, prendendo sem provas. Foi preciso que eles próprios confessassem suas motivações para acreditarmos naquilo que era fartamente documentado. 

Outros vazamentos comprometedores ocorreram nos últimos meses. Outros ainda devem surgir. Claro que, com o tempo, mesmo aqueles poderosos mais narcisistas devem parar com a prática, conforme se deem conta dos riscos do sincericídio virtual.

Enquanto isso, precisamos lidar com as verdades, sempre que elas aparecem via deslizes, ato falhos, mas também por reportagens e investigações. Podemos encará-las como sempre encaramos: de forma cínica, mostrando indignação de fachada, fazendo cara de espanto, como se fingíssemos acreditar que alguma coisa vá mudar com a mera exposição do fato ou com a punição do bode expiatório da vez.

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A alternativa ao cinismo é aceitar o que essas tristes revelações nos trazem faz décadas. As verdades da vez mostram que nosso sistema policial está repleto de defeitos estruturais que produzem desvios. Mudar é a única saída para que nossa sociedade deixe de sabotar a si própria. 

As polícias devem ser reformadas. A atual estrutura das polícias estaduais, dividida em duas, uma militar e outra civil, não consegue lidar com a sensação de vulnerabilidade da sociedade diante da violência crescente. Corporações militares produzem fartamente maus policiais que não acreditam no sistema de Justiça, que desconfiam dos policiais civis, escolhendo muitas vezes dar a sentença ao suspeito na rua, conforme os próprios critérios. 

Ao mesmo tempo, a estrutura produz maus policiais civis, ilhados em suas delegacias, afogando-se em papéis e tarefas burocráticas, induzidos a tornar esses espaços meros balcões para negociar liberdade e punir com condenações aqueles que não pagam. Como resultado, criamos um sistema penitenciário inchado, o quarto que mais aprisiona no mundo, mas mantém todos os brasileiros com uma sensação de impunidade permanente. Porque se prende muito mal.

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Portanto, que venham à tona as verdades, seja da forma que for, via redes sociais ou pelo jornalismo. Mas basta de cinismo e de hipocrisia. Vamos assumir nossos podres, admitir que erramos e até perdoar nossos erros. Para mudar e encarar com maturidade a necessária reforma das polícias no Brasil. 

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BRUNO PAES MANSO É JORNALISTA, DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA E PESQUISADOR DO NEV-USP 

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