Pesquisadora descobre livro inédito de Mário de Andrade

Em seu doutorado, Marina Damasceno de Sá investigou anotações do modernista e busca editora para publicar 'A Poetagem Bonita', que reúne 23 textos

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Por Rodrigo Simon
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Era início do mês de maio de 1925 quando Mário de Andrade recebeu mais uma das centenas de cartas que trocou com Manuel Bandeira. Entre notícias de uma nova máquina de escrever e alfinetadas no crítico Tristão de Athayde, o poeta pernambucano sugere ao amigo: “Se eu fosse rico, tornar-me-ia editor para meu gozo pessoal. E encomendava a você, entre outras obras, uma história, ou melhor, estudo crítico sobre a poesia no Brasil até os parnasianos inclusive. Não há um estudo crítico aceitável sobre os românticos. Sobre nenhum poeta!” Mário gostou da sugestão, mas respondeu com planos para um outro trabalho. “Fica a ideia do Romantismo de pé e de um outro livro com o lindo nome Poetagem Bonita, em que reunirei os estudos que for publicando sobre os chamados modernistas brasileiros”. Entusiasmado, chegou a estruturar o livro que, por algum motivo desconhecido, nunca foi lançado.

Retrato de Mário de Andrade pintado em 1927 por Lasar Segall Foto: IEB/USP

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Esse seria apenas mais um entre os muitos projetos nunca realizados pelo prolífico escritor, crítico, musicólogo e folclorista, não fosse o trabalho da pesquisadora Marina Damasceno de Sá. Em seu doutorado, ela mergulhou nos manuscritos do escritor, reunidos no Instituto de Estudos Brasileiros e encontrou não apenas o fichário em que Mário detalha o plano para o livro como também textos inéditos. “Encontrei A Poetagem Bonita ao revisar a classificação do Fichário Analítico de Mário, que reúne 9.634 fólios (páginas manuscritas), que havia sido feita pela pesquisadora Vera Lúcia Natale entre março de 1991 e outubro de 1992.”

No pequeno papel cartão, já amarelado pelo tempo, a caligrafia miúda do escritor revela os textos que iriam compor o livro nunca realizado. “A Poetagem Bonita = reunir em volume as críticas que tenho publicado sobre Manuel Bandeira, Gui, Oswald, Ronald, Menotti, Sérgio Milliet, Cendrars, a página em que explico o poema do Lonsago Cáqui que saiu em Klaxon, a sátira a Martins Fontes, a sátira a Hermes Fontes. Tudo com pequenas modificações...”

Segundo a pesquisadora Aline Novais de Almeida, que organizou a edição d’A Gramatiquinha da Fala Brasileira, outro projeto esboçado mas nunca finalizado por Mário de Andrade, “o grande mérito da Marina foi perceber que, em meio ao vasto material reunido por Mário, ali estava, em um pequeno pedaço de papel, o plano do livro.” Coube à pesquisadora encontrar e estabelecer os textos que deveriam compor o livro. Entre eles, outro achado: três dos textos eram inéditos.

No primeiro, sem título, dedicado a Oswald, Mário não economiza em elogios ao então amigo com quem viria a romper em 1929 e a quem aponta como o maior poeta já surgido no Brasil. “Porque ele é incomparável. Como poeta ele é absolutamente original, não tem nada que a gente possa comparar com ele na literatura do mundo, a não ser os imitadores dele”. Sem data precisa, mas provavelmente escrito em 1927, no pequeno texto Mário se dedica também a analisar a persona poética que Oswald teria elaborado em seus escritos. “Ele criou em poesia a personalidade que por falta de outro termo se poderia chamar de ‘personalidade do engraçado arrependido’. No geral os tímidos desandam para o humor. Oswald não, achou melhor pegar na facilidade que tinha para palhaço e fez graças em versos. Porém possuía por dentro um lírico sensível, comovido até a profundeza.”

Já os dois textos sobre Sérgio Milliet se dividem entre o elogio e a crítica. No primeiro, em que analisa Poemas Análogos (1927), Mário diz ser o amigo o “mais fatal” dos poetas brasileiros. No segundo, Poetas Menores, não esconde certa decepção com o romance Roberto, lançado em 1935. Ainda que esclareça que o adjetivo do título não faz referência ao valor artístico mas sim a uma “concepção de vida”, Mário diz considerar a literatura de Milliet menor. “O que, por mais que a gente não queira, e reconhecendo toda a importância e valor do livro, é sempre uma censura.”

No total, o projeto de Poetagem Bonita reúne 23 textos, entre críticas, crônicas e impressões, divididos em duas partes. Na primeira, Mário marca a ruptura com os “passadistas”, por meio do artigo Farauto, em que revida os ataques que o grupo ligado à revista Klaxon vinha sofrendo de publicações como o Jornal do Comércio, e com sátiras ao trabalho dos poetas Hermes e Martins Fontes. Na segunda parte, Mário se volta à análise dos modernistas e os “novos do Rio e de Minas”, escritores reunidos em torno das revistas Verde e Festa

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Autor de uma série de livros sobre Mário, o professor Marcos Antonio de Moraes, que orientou o trabalho, celebrou os achados. “A Poetagem Bonita, modelada na tese de Marina, é um valioso documento para se perceber os fundamentos da poética de Mário de Andrade no tempo modernista. Muitos estudiosos da literatura poderão, a partir de agora, explorar em profundidade as linhas de força da poesia do modernismo, por meio da posição crítica de Mário de Andrade.”A pesquisadora, que realizou o estudo com financiamento da Capes, trabalha agora para que uma editora possa enfim lançar A Poetagem Bonita.

Aos admiradores de Mário de Andrade resta a torcida para que o plano iniciado pelo modernista há quase um século finalmente saia do papel. Afinal, como disse o escritor, “a poetagem bonita é a linguagem poética aplicada a uma realidade física que a torna imediatamente verossímil, compreensiva e sensibilizante”. *Rodrigo Simon é jornalista, mestre em letras pela USP e doutorando em teoria e história literária pela Unicamp

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