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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Pílulas contra o medo

A ciência descobriu uma nova forma de curar traumas. Envolve substituir as memórias ruins pelas boas, e um remédio capaz de neutralizar o pânico

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Atualização:

Se você sofre de ansiedade e síndrome do pânico, tem uma ou mais fobias, não consegue superar os traumas de uma experiência desagradável, relaxe. Uma cientista holandesa parece ter encontrado uma solução para os seus problemas psicológicos. Nada de choque elétrico e sucessivas sessões no divã. Uma conversa franca, arrematada por uma pílula, basta. Tiro e queda, juram. Parece milagre, mas é uma conquista científica mesmo.

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Merel Kindt, o nome dela. Professora de psicologia clínica na Universidade de Amsterdam, dedicou boa parte dos seus 48 anos de idade a estudar as relações entre a memória e a mais antiga, poderosa e contagiosa emoção humana, o medo. Sua inovadora terapia ganhou tantos elogios em revistas especializadas (Nature Neuroscience, Biological Psychiatry) e de sumidades na matéria (como os psiquiatras das escolas de medicina de Harvard e Cornell, Roger Pitman e Richard A. Friedman, este em artigo publicado no New York Times, quatro meses atrás), que a revista The New Republic dedicou-lhe esta semana uma extensa reportagem, peremptoriamente intitulada “The cure for fear” (a cura do medo).

O “milagre” começou em 2003, quando, pela revista Nature, a dra. Kindt tomou conhecimento de uma pesquisa com ratos desenvolvida, três anos antes, pelo cientista canadense Karim Nader, na Universidade de Nova York. Inspirado numa descoberta casual de Susan J. Sara, que em seu laboratório parisiense induzira sem querer à amnésia alguns ratos depois que suas memórias já estavam consolidadas, Nader inverteu o lapso a seu favor, selecionando a “memória ruim” a ser alterada. A memória ruim relacionava-se à sensação de medo. Evocada, pelo processo conhecido como reconsolidação, uma dosagem do antibiótico anisomicina a nocauteava, anulando o medo.

Como estender a experiência aos seres humanos?, perguntou-se a dra. Kindt. E sem recorrer à anisomicina, que é um inibidor de proteína demasiado tóxico para os animais racionais. Sua hipótese era de que a memória emocional não é eterna, e se ela for ruim, indutora de medos e fobias, pode ser substituída por uma nova e inibitória memória – mesmo no cérebro humano, bem mais complexo que o dos animais.

Para intensificar seus estudos sobre reconsolidação, enfurnou-se num laboratório. Nossas memórias, constatou, não são estáticas, mudam ao longo do tempo, podem ser alteradas até com hipnose, mas se houver suficiente “memória positiva” para substituir a “negativa”, utilizando recursos que o cérebro aceita, além de prover as condições para mudança, bingo!

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O pulo do gato foi a adoção experimental do betabloqueador propranolol como neutralizador das memórias relacionadas a medo, ansiedade, pânico e emoções afins. Fármaco anti-hipertensivo indicado para o tratamento e prevenção do enfarte do miocárdio, da angina e de arritmias cardíacas, o propranolol deu o Nobel de Medicina de 1988 ao britânico Sir James Black e é um velho paliativo na farmacopeia de artistas, estudantes e demais bípedes ansiosos, inibidos e estressados.

Em 2008, assistida por Marieke Soeter, a dra. Kindt transformou em cobaias 60 estudantes voluntários da Universidade de Amsterdam. Todos aracnofóbicos. Divididos em três grupos, prendeu-os numa sala com algumas aranhas. Os dois primeiros grupos tomaram um comprimido de propranolol, o terceiro, um placebo. Em 24 horas, os que haviam tomado o anti-hipertensivo livraram-se de sua aracnofobia; a turma do placebo, não. Um mês depois, os submetidos ao propranolol, sem exceção, topavam até fazer cafuné numa tarântula.

  Foto: HENRY ROMERO | REUTERS

No ano seguinte, o experimento ganhou fama na comunidade científica mundial. Em 2013 a dra. Kindt ganhou uma cobaia especial: a também holandesa Karin Klaver. Seu caso é a abertura da reportagem da New Republic.

Em férias com o marido em Johannesburg (África do Sul), em meaos de 2011, Klaver fora acordada no meio da noite com um revólver na cabeça; não sofrera qualquer agressão física, mas a traumática situação não a deixaria em paz. Tinha pesadelos com o assalto, nem com o marido conseguia tocar no assunto. Atendida pela dra. Kindt, tomou propranolol, evocou a memória daquela noite sinistra, foi para casa, dormiu 12 horas e amanheceu curada. Lembrava-se do assalto nos mínimos detalhes, mas “foi como se tivesse ocorrido com outra pessoa”.

“Kindt e sua equipe são como mágicos da reconsolidação”, exalta Nader, o cientista que, de maneira decisiva, deflagrou a pesquisa. Que agora avança sobre terrenos mais espinhosos, como o dos transtornos de estresse pós-traumático.

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Efeitos colaterais? Nessa terapia, por enquanto, nenhum, desde que submetida a acompanhamento médico. O betabloqueador de Sir James Black não apaga a memória, como acontece com a do casal do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, apenas neutraliza as memórias relacionadas ao medo.

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Por ser fácil de comprar em qualquer farmácia, em algumas sem receita médica, e por custar quase que o preço de uma aspirina, há tempos vem sendo utilizado no combate a estados ansiosos, suores e tremores, desinibindo tímidos, acalmando paranoicos light, relaxando quem precisa enfrentar uma plateia ou uma banca examinadora. Em 2010 surgiu na extinta rede Orkut uma comunidade chamada “A Solução Propranolol”, com mais de uma centena de integrantes, a maioria estudante. Até para combater ressaca já o recomendaram. Talvez devêssemos ter tomado uma drágea naquele 7 a 1. E outra no dia 17 de abril.

Não é a solução para combater a ansiedade, apenas uma muleta, alertam psiquiatras. Na dose errada, pode até ser fatal. Há 10 anos, a aluna de uma autoescola de São Paulo entrou em coma antes de fazer o exame de motorista para o qual havia se preparado ingerindo 40 mg do poderoso relaxante. Nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, dois atiradores norte-coreanos ficaram bem relaxados antes de puxar o gatilho, mas, pegos no exame antidoping, acabaram banidos da competição.

Opinião por Sérgio Augusto
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