Pindaíba, perus e bacanaços

Operação Crise Duradoura, um retrato da Era Bush, atingiu em cheio o Dia de Ação de Graças

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

Os sinos ainda não estão bimbalhando, o trenó de Papai Noel continua estacionado no Pólo Norte, mas o peru já foi para a mesa e ritualisticamente devorado na quinta-feira. O primeiro peru da temporada natalina, bem entendido: o turkey do Dia de Ação de Graças dos americanos (ou Thanksgiving); pois o segundo, o peru do Natal, o nosso peru, enfim, só daqui a 24 dias. Entre um e outro, compras, compras, compras, presentes, presentes, presentes. Gaspar, Baltazar e Melquior não tencionavam inventar a sociedade de consumo quando levaram ouro, incenso e mirra até aquela manjedoura, mas não é de todo improcedente desconfiar que a tão deplorada comercialização do Natal tenha começado, justamente, com os reis magos; assim como a tradição de se dar e receber presentes desinteressantes e inúteis na noite de 24 de dezembro. O mais adequado mimo natalino é o velho e bom dinheiro, com o qual o presenteado possa comprar o que quiser, recomenda Kevin Hassett, diretor de políticas econômicas do The American Enterprise Institute, amparado numa pesquisa de opinião pública amplamente desfavorável ao demagógico o-que-vale-é-a-intenção. Tradição bem mais recente, instituída pelos peregrinos que fugiram da Inglaterra para a costa leste dos EUA no século 17, o Dia de Ação de Graças consolidou-se em torno de um peru (daí o trocadilho Turkeysgiving), também com as mais puras intenções de congraçamento e altruísmo. Igualmente usurpado pelo mercantilismo, transformou-se no grid de largada das festas de fim de ano, com direito até a uma parada pela Quinta Avenida, em Nova York, patrocinada pela loja de departamentos Macy?s. É o feriado mais importante para os americanos, e desde 1863, por determinação de Abraham Lincoln, cai na última quinta-feira de novembro. A pedido de setores do comércio varejista, durante dois anos caiu na terceira quinta-feira de novembro, mas o presidente Franklin Roosevelt, sob massacrante pressão popular, voltou atrás em sua decisão em 1941. Como o respeito que o povo exigia ao calendário não se estendia aos propósitos originais da festa, sua comercialização só fez aumentar nas últimas sete décadas. Sua folclorização também. Por sugestão do sucessor de Roosevelt, Harry Truman, inventou-se a cerimônia do indulto presidencial a um peru adrede escolhido para escapar da panela, ser homenageado no roseiral da Casa Branca e virar destaque na Thanksgiving Parade da Disneylândia. Se já era hipócrita, ainda mais hipócrita ficou a solenidade depois que Bush, inflexível com os condenados à morte no Texas quando lá governava, assumiu a presidência. Quarta-feira passada ele indultou seu oitavo e último galináceo, o felizardo Pumpkin. Para azar de Pecan, segundo colocado na votação, cujo destino permanece ignorado. Na última semana de novembro de 2002, a revista The New Yorker chegou às bancas com uma capa desenhada por Art Spiegelman em homenagem ao Dia de Ação de Graças. Cheia de perus. Caindo do céu como se fossem bombas despejadas sobre um país não identificado. No desenho original havia um título: "Operation Enduring Turkey" (Operação Peru Duradouro), gozação na Operation Enduring Freedom (Operação Liberdade Duradoura) com que o governo Bush batizara os ataques aéreos recém-iniciados contra o Afeganistão. O editor da revista, David Remnick, aprovou o desenho, mas não o título, a seu ver, provocativo. Mais provocativa e engraçada teria sido uma capa com um peru indultando Bush pelos seus oito anos de desgoverno, se bem que tamanha graça ele não merece. Sobretudo pelo estrago que permitiu fosse feito na economia mundial. Sua Operação Crise Duradoura afetou até a distribuição de perus congelados com que empresas costumam gratificar seus funcionários na véspera do Thanksgiving. Poucos (não mais de 3% dos empregadores) mantiveram a tradição este ano, acentuando uma queda que, na verdade, teve início antes da atual crise financeira e tende a se agravar. Os perus, penhorados, agradecem. Ao contrário da indústria e do comércio, que não sabem o que fazer para evitar o pior fim de ano das últimas décadas, talvez o pior desde a Grande Depressão. Grandes e pequenas lojas esticaram os descontos (em até 70%), o horário de funcionamento (até a meia-noite), mas a freguesia se manteve arredia, preferindo a poupança à gastança. Calcula-se que menos 6 milhões de americanos irão às compras neste fim de ano, e os que se aventurarem só gastarão o estritamente necessário. Papai Noel talvez nem precisará do trenó para entregar todas as suas encomendas. Pechinchas, só as extremamente vantajosas. Tal não é o caso, por exemplo, das bolsas de Marc Jacobs que a elegante Saks remarcou para US$ 249. Ok, elas custavam US$ 995 até alguns dias atrás, mas perigam de ser vistas como falsificadas nas mãos de quem não parece suficientemente abonado para possuir uma. Se vivo fosse, Thornstein Veblen estaria se sentindo vingado das críticas que sofreu quando, há 109 anos, publicou sua Teoria da Classe Ociosa, seminal diatribe contra o "consumo conspícuo", ornamental e exibicionista da alta burguesia. Pois nem os bacanaços parecem ter escapado ilesos da Operação Crise Duradoura. Foi-se o tempo em que eles jogavam fora ou passavam adiante qualquer coisa com um mínimo de uso ou que julgassem fora de moda. Atualmente, até meia-sola e salto novo as dondocas estão mandando pôr em seus Manolo Blahniks e em suas Pradas. Os sapateiros, penhorados, agradecem.

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