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Pobre política do imaginário urbano

A corrida em que a milenar Acrópole, marco civilizatório, ficou para trás do Cristo dos turistas confirma a era da superficialidade

Por José de Souza Martins
Atualização:

O que o Cristo Redentor tem que a Acrópole de Atenas não tem? O que a azaléia tem que o ipê rosa não tem? A estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, foi eleita, principalmente por internautas, uma das novas sete maravilhas do mundo. A azaléia foi confirmada em lei da Câmara Municipal de São Paulo, assinada pelo prefeito, como a flor símbolo da cidade. O que ocorreu nestes dias com o Cristo, do Rio, e a Azaléia, de São Paulo, expõe uma dimensão da nossa mentalidade urbana em crise e nela um indício da dimensão carnavalesca da crise brasileira. A estátua do Cristo Redentor nada tem que faça falta à Acrópole. No entanto, na recente corrida virtual de futilidades e falta do que fazer, que elegeu as novas sete maravilhas do mundo, teve mais votos o jovem Cristo de cimento do que a milenar Acrópole de pedra. O resultado da eleição expressa essa nova cultura da comunicação instantânea e da opinião superficial em que tudo se equivale. Clica-se e, se for o caso, deleta-se. Curiosamente, as sete maravilhas do mundo continuam sendo sete, quando o mundo é hoje mais vasto e pontilhado de maravilhas que atestam o engenho humano e a beleza da alma humana. Aparentemente, o sete das maravilhas foi mantido para coincidir com o sete do dia do anúncio do resultado da eleição, o sete do mês e o sete do ano porque há uma disseminada crendice em relação ao número sete. Tratou-se de invadir o imaginário para globalizá-lo, vencê-lo e negociá-lo. O Cristo Redentor, que deveria ser a negação disso tudo, acabou servindo "pra cristo" da crendice incorporada à modernidade sem rumo nem esperança. Votantes do mundo inteiro votaram induzidos pelas frases de incentivo que acompanhavam a fotografia publicitária de cada monumento. Entre o Cristo e a Acrópole, a escolha foi entre o "símbolo de hospitalidade e abertura", que a multidão desamparada deseja, e "o grande símbolo de civilização e democracia", que, no pensar dos cidadãos da sociedade da pressa e do consumo, não enchem barriga nem alimentam ilusões. Já a azaléia, originária da China e do Japão, tem tudo o que o ipê rosa tem. Só que o ipê rosa não tem a estrangeiridade de tudo que aqui nos trópicos é de merecimento e apreço. O nosso ipê rosa parece flor de somenos, originária daqui de perto, dos matos da Bacia do rio Paraná. É uma desforra ver o Diário Oficial do Município desautorizado pelo imponente atrevimento, de nativo sem formalidades, do ipê rosa, que se insurge por toda a cidade, no mesmo momento em que outra flor, estrangeira, é nomeada símbolo da cidade. Livrou-se o ipê rosa de ser transformado em funcionário público floral e simbólico. Aberração não é a flor, é a lei aprovada pela Câmara, verdadeira urtiga colocada pelos camaristas nas mãos do prefeito, que, de qualquer modo teria que assiná-la para que o município não ficasse sem símbolos, caso do brasão e da bandeira. Teve o prefeito que assinar a lei que consolida e põe alguma ordem no sem pé nem cabeça de leis aprovadas pelos vereadores de São Paulo durante meio século, entre 1951 e 2002, nos momentos em que nada tinham para fazer. Perdeu o prefeito, porém, a oportunidade de vetar, em nome da tradição e até da própria lei, a maioria dos artigos da consolidação. Sem contar os muitos absurdos que contém. Numa cidade pluralista em todos os sentidos, na composição humana, na religião, na política, na cultura, na criatividade, como é próprio de uma verdadeira metrópole, fica o cidadão sujeito às particularidades de determinados grupos sociais, ainda que com elas não se identifique. Essa lei nega o elementar e civilizado direito à diferença e, sobretudo, o direito a que a cidade complexa e diversificada tenha a educativa identidade do múltiplo, a de um jardim e não apenas a de uma solitária flor. A partir da lei, negro é obrigado a ser negro porque em "todas as solenidades que envolvam a raça negra" deve ser executado o "Hino à Negritude", de 1966. Na imposição do hino, a lei impõe aos negros o conceito altamente discutível de raça. O subtítulo do hino o identifica como um tributo à africanidade. Portanto, o hino decretado decreta que toda a África é negra. Os hinos da Moóca e da Zona Leste serão executados "especialmente, nas cerimônias e nos eventos cívicos, militares ou eclesiásticos" referentes ao respectivo bairro. Ora, num país em que, desde a proclamação da República, em 1889, há separação entre o Estado e a Igreja e em que o Estado brasileiro não tem nenhuma religião oficial, é inacreditável que tenham os legisladores imposto até às "cerimônias eclesiásticas" naquele bairro e naquela região a obrigação da execução dosrespectivos hinos. Essa lei nos mostra que passamos meio século sob o império de leis que violam nossos direitos quanto ao simbólico. Mostra-nos, nesse longo período, uma câmara municipal que legisla em nome do particular, e não em nome do universal e da universalidade de valores, que é o que se tem o direito de esperar como cidadão. A consolidação sancionada mostra que é despreparado o legislador municipal das maiorias que decidem. Mas o despreparo não é gratuito nem gratuita é a mentalidade que lhe corresponde. O que aí se expressa é a crise do nosso imaginário urbano, no fato elementar de que somos cidade e metrópole sem termos desenvolvido uma consciência social e política que de algum modo lhe corresponda. A mentalidade que presidiu essa vasta coleção de leis, agora reunidas e consolidadas, é uma mentalidade antiquada, que não acompanhou o que a cidade é e poderia ser. A mentalidade que aí se revela é do tempo da escravidão e da monarquia. Não é republicana nem é moderna. O Cristo da eleição é, por seu lado, um cristo de praia e de turismo, e não o Cristo das duras provações do dia a dia de uma cidade atormentada, como a do Rio de Janeiro. Em ambos os casos, estamos em face da crise do urbano, vencido pela mentalidade e pela realidade das colagens, das cópias, das quantidades e das equivalências. TERÇA, 12 DE JULHO Os símbolos de São Paulo O prefeito Gilberto Kassab (DEM) promulgou um conjunto de leis que elegem símbolos de São Paulo. Há hino para tudo. Para negros, para a Zona Leste, até para a Fórmula 1 - que deve ser cantado antes e depois de cada Grande Prêmio Brasil.

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