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Poeira que Nova York ainda não sacudiu

Na ânsia de se reconstruir e reagir aos ataques de 11/9, a cidade esqueceu quem respirava a nuvem venenosa que envolveu a tragédia

Por Anthony Depalma
Atualização:

De todas as imagens do ataque a Nova York no dia 11 de setembro de 2001, a que mais persistiu na minha memória não foi o clarão brilhante do impacto, ou a pavorosa visão de pessoas desesperadas saltando para a morte, ou aqueles estarrecedores 10.52 segundos que a primeira torre levou para ceder e desmoronar em si mesma, num torvelinho de concreto e cinzas, seguida incrivelmente pela segunda torre desabando quase no mesmo tempo, a poucos metros de distância. Foram realmente terríveis essas imagens, mas há nelas um aspecto de irrealidade cinematográfica que me manteve distante, como se eu estivesse vendo um filme ou jogando um videogame. A imagem que deixou uma cicatriz indelével em meu coração foi a improvável foto que meu colega Eddie Keating tirou de um elegante jogo de chá, que encontrou por acaso num apartamento desocupado perto do Marco Zero. O conjunto de bules, xícaras e açucareiro combinados, arrumados talvez para o desjejum naquela manhã excepcionalmente límpida de setembro, estavam cobertos por uma camada de pó da cor de ossos ressequidos.

 

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Esse tableau fantasmagórico me assombrou nos anos que se seguiram desde que o vi pela primeira vez, não porque ele diminui o horror ou drena o ódio, mas porque simboliza de maneira marcante o modo como o acontecimento e suas consequências aderiram a tantas pessoas, muito além das arenas sinistras do terrorismo, da guerra e até do fatídico World Trade Center. A porcelana elegante não tinha nenhuma conexão direta com os acontecimentos daquele dia antes de o primeiro avião atacar. No entanto, ela fora envolvida num suave revestimento de morte e destruição que a transformou, de implemento precioso da vida cotidiana, num artefato de um momento de morte. A poeira se infiltrou em milhares de escritórios e apartamentos da mesma maneira. E foi levada a outros milhares de lares pelos primeiros socorristas, trabalhadores da construção e voluntários que ajudaram nos dias e semanas após o ataque - no início para encontrar sobreviventes, depois, tristemente, para recuperar os restos mortais de vítimas, e também limpar o local mostrando aos terroristas, e ao mundo, que a grande cidade fora ferida, mas não humilhada. Isso transformou Nova York numa cidade de pó.

 

Esse pó aderiu à cidade como aderiu ao jogo de chá, transformando Nova York. O que ocorreu após o ataque é uma tragédia exclusivamente americana, desencadeada pelas mesmas virtudes de generosidade e solidariedade que vieram a ser associadas ao caráter americano. Bastaram sete dias para Wall Street voltar capengando aos negócios, mostrando aos terroristas que sua violência não havia desmantelado a América.

 

Mas essa era a mensagem fundamental. Não havia tempo para a grande cidade se demorar em qual poderia ser o impacto no longo prazo, ou mesmo admitir que poderia haver um perigo persistente. Se falhasse a rápida reabertura de Wall Street teria sido um desastre. A ameaça distante de que a poeira poderia ter envenenado o ar e tornado parte da cidade imprópria para viver era então, não só incerta, mas inaceitável.

 

Assim, o terreno foi preparado para um cabo de guerra entre verdade e exagero, entre alarmismo e engano, entre segurança pessoal e conveniência política que transformou o pior desastre ambiental da cidade de Nova York num teste para nossa ciência, nossas leis, nossos preceitos de governança e até mesmo nossa compreensão tradicional do bem comum. Essencialmente, virou um teste de nós mesmos. Embora o ataque tenha exposto falhas mortais na capacidade do país de se proteger de terroristas almejam morrer no ataque, reabrir Wall Street provou que a América não fora derrotada. Só que o sucesso desse esforço, incluindo o trabalho rápido com que foi feita limpeza e recuperação que se seguiu, ficou entrelaçado com a tragédia. De maneiras que só viriam a se tornar visíveis ao longo dos anos, a forma como lidamos com as consequências do ataque revelaram que o país não estava preparado para proteger a si mesmo de si mesmo.

 

Os problemas que surgiram após o 11 de Setembro foram apresentados como uma tentativa deliberada da administração Bush, e também da cidade, de ocultar o perigo, uma vasta conspiração para colocar o lucro à frente da saúde das pessoas. Mas não foi isso. Muitas decisões ruins foram tomadas, com certeza, mas não houve venalidade, nem conspiração para ocultar a enormidade do que acontecera, se isso fosse realmente possível. Houve sim uma longa sequência de decisões individuais - algumas tomadas às pressas, algumas com arrogância - que privilegiaram a recuperação da cidade acima da recuperação de seu povo.

 

Em resposta a essa catástrofe, homens e mulheres de ciência ou da medicina tentaram, contra enormes dificuldades, montar uma resposta compassiva e dar respostas aos que precisavam desesperadamente saber o que lhes acontecera e o que deveriam esperar no futuro. A palavra herói foi atribuída livremente, usada por vezes onde e quando não era coisa garantida. Houve heróis e vilões genuínos, mas eles não se enfrentaram da forma direta como esse conflito foi retratado quando a imprensa marrom se apropriou do desastre. O prefeito Rudy Giuliani não foi o único a tomar decisões difíceis que pareciam colocar a recuperação à frente da precaução. Mesmo os mais experientes em salvamento tomaram decisões que acabaram tendo consequências trágicas. Os bombeiros heroicos que procuravam por seus irmãos caídos acreditaram que se expor a materiais perigosos, para recuperar seus mortos, era um cálculo justificado. A seu ver, os vivos tinham uma dívida para com os mortos que tornava o interesse próprio intolerável.

 

A característica definidora da catástrofe é que, a partir da manhã daquele 11 de setembro, os riscos representados pela poeira e as cinzas estavam visíveis para todos. Colunas enoveladas de poeira cinzenta irromperam pelas ruas da cidade como monstros libertados do inferno. A poeira microscópica se transformou num invasor hediondo, atacando a mais essencial das necessidades humanas - a necessidade de respirar. Era inescapável, mas a poeira se tornou uma metáfora da cegueira que desceu sobre a cidade, obscurecendo a realidade e confundindo decisões que mais tarde seriam lamentadas.

 

Embora milhões de pessoas tenham observado horrorizadas quando os edifícios se desintegraram, a poeira em si permaneceu um mistério. Mesmo com a ciência mais avançada, ainda não sabemos o que a mistura perversa de pó, cinza e materiais tóxicos fez quando pousou no fundo dos pulmões arquejantes dos socorristas. Não sabemos que curto-circuito ela terá causado em seus sistemas imunológicos, nem como brincou com seus genes. E não saberemos por muitos anos se ela se combinou com outros venenos para acelerar ou exacerbar ataques cancerígenos nos corpos das pessoas que foram cobertas por ela, assim como aquele jogo de chá. Entretanto, sabemos que as dúvidas semeadas nos primeiríssimos dias foram duradouras. O que poderia ter sido um caso-sentinela da resposta de emergência que ergueu uma nação inteira que estava de joelhos virou um ciclo interminável de altercações, desconfiança, doença e incerteza, enquanto autoridades tentavam se livrar da culpa, socorristas se tornaram cruzados por conta própria, advogados buscavam fazer história nos tribunais e emoções jamais antes vistas afloravam. A cidade ferida se tornou uma cidade enferma que com frequência se recusou a reconhecer as próprias deficiências.

 

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Tempos depois de a maior parte da poeira ter sido varrida para longe, muitas histórias individuais de verdadeira coragem e heroísmo brilham agora através dessa névoa de incertezas. Um sem número de relatos dolorosos de homens e mulheres que realmente agiram como heróis para depois serem emudecidos por doenças que eles não podem explicar. Tem havido exemplos comoventes de homens e mulheres de ciência que se recusaram a permitir que política ou opinião pública obscureça seu trabalho e mourejaram contra grandes dificuldades, e nas circunstâncias mais adversas, para continuar oferecendo assistência na classificação e tratamento que seus pacientes necessitavam. Não faltaram heróis.

 

Infelizmente, a combinação de nossos traços mais escuros e mais nobres tornou a história da cidade de pó mais obrigatória que a verdade poderia justificar, e alguns sucumbiram à tentação de dobrar a verdade para servir a seus propósitos. Serão necessários anos para a poeira baixar, se algum dia o fará.

 

A certeza, em princípio e na prática, se tornou ela própria uma vítima. Os céticos inicialmente usaram princípios de certeza para questionar a noção de que a poeira adoecia pessoas. Ao negarem qualquer perigo nas primeiras semanas e meses após o 11 de Setembro, a cidade de Nova York e Washington hesitaram em tomar medidas que poderiam ter garantido confiavelmente a segurança de trabalhadores e moradores. Ao não serem claros sobre os riscos, os governos municipais e federal -no que foi chamado de uma conspiração proposital - sacrificaram um grau de segurança pela rápida recuperação de Wall Street. Aí, arvorando-se um alto tereno moral que dificultou o questionamento dos sintomas de sobreviventes, os advogados facilitaram a ocorrência de abusos.

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Durante quatro anos, eu cobri as consequências sanitárias e ambientais do Marco Zero para o jornal The New York Times. Muitos artigos meus apareceram na primeira página do Times e foram reimpressos por todo o mundo. Eu acabei conhecendo a maioria das pessoas importantes envolvidas, desde as primeiras tentativas para identificar os conteúdos da poeira, até o histórico litígio em massa que levou milhares de socorristas a denunciar a Cidade de Nova York por negligência nos tribunais. Em cada oportunidade, encontrei pessoas nos dois extremos da questão - as que se recusavam a aceitar que a poeira havia causado a doença de alguém, e as que se recusavam a aceitar que a poeira não ia matar todos que tocasse. Quando o diretor da Agência Federal de Proteção Ambiental disse que o ar era seguro para se respirar, eu, como tantos nova-iorquinos, fiquei aliviado, porque naquela época, nos dias que se seguiram aos ataques, parecia impossível processar novas más notícias. Acreditei porque queria acreditar. Mais tarde, enquanto investigava o que havia ocorrido, passei a ver as coisas de maneira diferente.

 

A cidade de Nova York em certo ponto calculou que mais de 500 mil pessoas podem ter sido afetadas de alguma forma pela poeira ("Assessing the Health Impacts of 9-11", Relatório do World Trade Center Health Panel, 13 fev. 2007: 50). Ademais, milhares de pessoas de todo o país vieram para Nova York naquele momento trágico para trabalhar nos escombros. Milhões viram as torres cair e simpatizaram com os que ficaram feridos no exercício do seu trabalho. Sob muitas circunstâncias, a sociedade americana celebra os esforços dos que respondem a emergências. Em Nova York, algumas dessas pessoas foram quase esquecidas. A reconstrução dolorosamente lenta do Marco Zero recebe mais atenção que a saúde dos que responderam ao desastre. Mesmo enquanto crescem as fileiras dos doentes, estes ficam cada vez mais apagados contra o pano de fundo. E não foram só os socorristas que foram atingidos pelo pó. Moradores, trabalhadores, cientistas, médicos, advogados e políticos sentiram a poeira de alguma forma. A história das vítimas dos efeitos do 11 de Setembro, contada pelas experiências pessoais dos indivíduos cujas vidas jamais foram as mesmas desde aquele dia, é um capítulo negligenciado de um dos acontecimentos mais extraordinários de nosso tempo.

 

O alcance científico, médico, político e legal do desastre nunca foi observado dessa maneira abrangente. Por conta do litígio em massa contra a cidade, muitos dos indivíduos mais intimamente envolvidos na limpeza e suas consequências não quiseram falar publicamente, deixando que seu testemunho em juízo fale por eles. Tudo que envolve o desastre é monumental, exceto a poeira propriamente dita. Mas, somente quando as pequenas decisões e atos individuais de arrogância, ignorância e coragem forem examinados, surgirá um sentido de tragédia revelador. No fim, trata-se de uma história de medo e uma história de esperança. Os moradores da cidade, como a cidade em si, foram curvados, mas não quebrados. E nós, como sociedade, não estaremos preparados para lidar com o próximo desastre se não compreendermos completamente o que fizemos de certo - e de errado - da última vez.

 

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

EXTRATO DE CITY OF DUST: ILLNESS, ARROGANCE, AND 9/11, PUBLICADO SOB PERMISSÃO DA FT PRESS/ PEARSON. DEPALMA FOI REPORTER E CORRESPONDENTE DO THE NEW YORK TIMES E É AUTOR TAMBÉM DE O HOMEM QUE INVENTOU FIDEL (COMPANHIA DAS LETRAS). EM 2009, GANHOU O PRÊMIO MARIA MOORS CABOT COMO RECONHECIMENTO POR SEU TRABALHO JORNALÍSTICO.

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