Poemas de Luci Collin e Maria Lúcia Verdi dão voz à mulher

Novos livros das poetas são lançados com ecos de Shakespeare, Virginia Woolf e Gertrude Stein

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Por Dirce Waltrick do Amarante
Atualização:

“Somos animais autobiográficos quer queiramos ou não”, disse Derrida. “Por diferentes meios, nós escrevemos, dizemos de nós”, afirma Maria Lúcia Verdi em seu mais recente livro de poesia, Em Voz Baixa, espécie de diário pessoal. A constatação de Verdi serviria também para definir A Rosa que Está, livro de Luci Collin, no qual a autora relata em versos seu universo artístico e literário, como se lê no poema que abre o livro: “É preciso voltar/ às rosas mais antigas/ e suas exuberâncias/ e seus frêmitos de infinito/ às palavras surgentes/ às vozes prometidas/ nos ecos do que amanhece”. Nesses dois livros recém-publicados pela editora Iluminuras, ouvem-se ecos da trajetória das poetas, que perpassam sobretudo suas referências bibliográficas, as quais reverberam em nós de forma renovada, pois, como diz Giorgio Agamben, a leitura é sempre biográfica.

A poeta brasileira Luci Collin Foto: Iluminuras

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Em A Rosa que Está se encontra a rosa de Shakespeare, da peça Romeu e Julieta – “A flor que chamamos de rosa se outro nome tivesse ainda teria o mesmo perfume” –, e o teatro se impregna nos versos de Collin, que, aliás, trabalha com dramaturgia. Em Teatro de Animação, lê-se: “Nada têm de frágeis/ nem você nem as coxias/ isso agora é litúrgico: rubrica / eu pronunciei nomes errado/ e a própria encenação esmaecida chora/ as imagens se resolvem sob improviso”. Os versos de Collin estão sobre um palco, no qual imagens surgem de “dedos espantados” que “cobrem todo teclado/ tentando fugir talvez/ em inconsolável desgoverno/ na mais precária consciência”. Esse “precário desgoverno” dos versos trabalha em benefício de sua poesia, que cria com ele imagens como “Negror/ do papel branco/ com seu hálito de dália encruada/ e negror da palavra mágica que na hora azada/ não funciona, foi esquecida/ faltou à boca”. 

No livro da poeta paranaense, a memória de outros poetas e poemas, “em primeira pessoa”, ganha outra dimensão. A Ismália do poema homônimo de Alphonsus de Guimaraens, escrito no século passado, transforma-se, nos versos de Collin, numa Amélia dos anos 2000, a qual, em vez de enlouquecer e sonhar na torre, “desenlouquece”, rebela-se e põe-se “a queimar comida/ a adoçar a sopa/ a ter vaidades ruidosas”. Com isso, Amélia muda seu destino: “Aquilo sim é que era voo de verdade”. O papel da mulher é discutido em poemas, como quando conta que o homem “esculpe (lentamente) cicatrizes/ a mulher em mim refaz (ponto por ponto) a estrada”. Nesse sentido, seus versos dão voz e poder à mulher, em mutação.

O que permanece imutável nos versos de Luci é a rosa que está, pois, como disse Gertrude Stein: “uma rosa é uma rosa é uma rosa”. Nos versos de Verdi, nada se estabiliza, nem poderia, pois, como lembra Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), em uma das epígrafes escolhidas pela poeta: “Somos estrangeiros/ onde quer que moremos. /Tudo é alheio/ Nem fala língua nossa”. As epígrafes, aliás, revelam muito a filosofia de sua composição. Uma outra, cuja autoria não é identificada, anuncia que “o que se mostra se esconde/ o que se toca desvanece/ soa, ecoa, insistente/ o sentido que só escapa/ – aqui, acolá, agora, antes após”. 

Diante dessa instabilidade e do paradoxo, Verdi escreve sua “poesia como diário não escrito” e, em “tão poucas linhas”, experiências inusitadas do dia a dia vêm à tona, como o seu encontro com um morador de rua que se dizia Deus e pregava para um grupo de jovens, depois de se ter banhado no espelho d’água em frente ao Masp. Nesse diário, as referências bibliográficas de Verdi emergem e, a respeito da experiência com “Deus”, a autora conclui citando Hegel via Slavoj Zizek: “O ser humano é essa noite, esse nada vazio, que contém tudo em simplicidade – uma riqueza infinita de representações, de imagens, das quais nenhuma lhe pertence – ou que não estão presentes”. 

Uma característica importante da poesia de Verdi é o destaque que a poeta dá aos objetos. Mais uma vez é uma epígrafe, essa de Virginia Woolf, que anuncia, em sentido contrário, esse aspecto explorado nos seus versos: “Ainda assim não conseguia dizer nada; o horizonte parecia completamente vazio de objetos de que pudesse falar”, diz Woolf. Na poesia de Verdi, fala-se muito sobre os objetos: “(numa dessas noites olharei/ para o tapete e a forma/ estará imóvel) // Meio da noite/ Tudo silenciado/ menos a geladeira/ O som das necessidades/ a manutenção dos corpos”.

Em um poema em prosa, são os sapatos vermelhos os protagonistas, são eles, a propósito, os responsáveis pelas atitudes de sua dona e não o inverso: “Mas tais sapatos, apesar de elegantes e aparentemente seguros (tiras oportunas, saltos razoáveis), são, na verdade, inquietantes instrumentos para andarilhas exiladas”. Entre a rosa e os sapatos, pululam rastos de biografia das duas poetas. *DIRCE WALTRICK DO AMARANTE É AUTORA, ENTRE OUTROS, DE ‘A BIBLIOTECA E A FORMAÇÃO DO LEITOR INFANTOJUVENIL: CONVERSA COM PAIS E PROFESSORES’ (ILUMINURAS, 2019)

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