Poeta Ezra Pound inspira 'MST de direita' na Itália

Escritor foi cultuado pelos fascistas e batiza a CasaPound, que ocupa prédios para alojar famílias, mas discrimina imigrantes

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

Foi chocante. Domingo passado, quando neofascistas italianos celebravam em Predappio o 96º aniversário da Marcha sobre Roma, a gigantesca passeata golpista que levou Benito Mussolini ao poder, foi lançado, em plena efeméride, um hipotético parque temático chamado “Auschwitzland”. Grafado na mesma tipologia da Disneyland, suas atrações, deduz-se, transformariam em brinquedos as atrocidades cometidas em Auschwitz, o mais famoso campo de extermínio nazista. “É apenas uma piada de humor negro”, tentou amenizar uma militante do partido de ultradireita Forza Nuova, que planfetava no cortejo. De indizível mau gosto, acrescente-se. 

Militantesdo movimentoCasapound durante manifestação Foto: Fabio Frustaci/ANSA

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Predappio é a cidade em que Mussolini nasceu e foi enterrado. Virou polo de peregrinação para os nostálgicos da Itália fascista, sempre com novas feições. Atualmente, a de maior destaque é a do vice-primeiro-ministro Matteo Salvini. Nenhum líder político da Itália, contudo, se compara ao Duce. Mussolini permaneceu 22 anos no poder e empreendeu exitosas bravatas colonialistas na África; perdeu, é verdade, uma guerra mundial e acabou dependurado como um porco em praça pública, mas sagrou-se o supremo fanfarrão do país. Seria o maior de toda a Europa se Hitler não tivesse existido. 

Sua maior glória – o que vale dizer, a maior vanglória do fascismo – foi o aperfeiçoamento do sistema ferroviário. “Nossos trens são os mais pontuais do mundo”, gabavam-se os italianos, proeza que até Fernando Pessoa exaltou. “Você vive em Milão, seu pai vive em Roma” – escreveu o poeta português, num assomo de cáustica ironia. “Os fascistas matam seu pai, mas você tem a certeza de que, metendo-se no comboio, chega a tempo para o enterro.” (Mais a respeito em Sobre o Fascismo, a Ditadura Portuguesa e Salazar, escritos políticos de Pessoa, que a editora Tinta da China acaba de publicar no Brasil.)

Trump tem-se esforçado, mas não chega aos pés de Benito em histrionismo. A turba entorpecida por seus discursos populistas, infectados de ameaças, insultos e descaradas mentiras lembra a dos fanáticos seguidores do Duce, o que já levou inúmeros analistas políticos a compará-lo com mais frequência ao ditador italiano do que ao Führer alemão. Por vezes enviesadamente, como fez, semanas atrás, a jornalista e escritora americana Anne Roiphe, ao comparar Trump ao Cavaliere Cipolla, de Thomas Mann.

Quem leu o conto Mário e o Mágico sabe de quem se trata: um ilusionista e hipnotizador que se apresenta na cidadezinha turística de Torre di Venere, no mar Tirreno, onde um casal de alemães e seus filhos passam as férias de verão, no final dos anos 1920. Arrogante e prepotente, Cipolla deleita-se com humilhar e ridicularizar os mesmerizados espectadores de um velho cinema em que todas as noites se apresenta, obrigando-os a obedecê-lo cegamente. Até que um dos humilhados, Mário, garçom de um café, curiosamente batizado Esquisito, dá-lhe dois tiros certeiros, libertando a plateia do mágico e do transe a que fora por ele induzida. 

Mann escreveu Mário e o Mágico em 1929, mesmo ano em que ganhou o Nobel de Literatura. Mais que uma história sobre as diferenças culturais e espirituais entre alemães e italianos, é um alerta aos perigos representados pela montante fascista. A Itália que o narrador encontra diariamente é uma sociedade anestesiada pelo medo, contaminada por preconceitos, patriotices e um puritanismo a que nem as crianças conseguem escapar. Cipolla é um sucedâneo burlesco de Mussolini, cujos correligionários, uniformizados de preto, já perturbavam e agrediam a população nas grandes cidades. 

Cinco anos antes, o autoexilado poeta americano Ezra Pound, furibundo com a supremacia da usura na Inglaterra, mudara-se para a Itália. Lá encantou-se pelo Duce e o ideário fascista, a ponto de tornar-se um frenético e onipresente garoto-propaganda do regime, em prosa, verso e programas de rádio. Seus conterrâneos quase o executaram, por crime de traição, optando afinal por interná-lo num manicômio. Os fascistas italianos, gratos, nunca o esqueceram. 

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Cultuado pelos neofascistas, em sua homenagem criou-se um movimento político de direita, em plena expansão pelo país. À frente dele, os “ragazzi di Ezra”, rapazes doutrinados pelas delirantes teorias poundianas sobre dinheiro, usura, questão habitacional, soberania das nações etc. Seu principal evangelho são os dois Cantos (72 e 73) mais panfletários do poeta. O QG do grupo é um prédio cinzento no centro de Roma, a que deram o nome de CasaPound, parcial e pedantemente grafado em latim: CasaPovnd. 

A especialidade do movimento é ocupar prédios vazios para neles alojar famílias sem teto. É um MST “di destra”, pois discrimina os seus abrigados. Imigrantes de pele escura? Nem com pistolão.

O saudoso historiador Tony Judt dizia que os fascistas – até por ser o fascismo “uma colcha de retalhos de ideias roubadas a várias doutrinas” e prioritariamente vocacionadas para conquistar o poder – não trabalham com conceitos, só com atitudes. 

Os “ragazzi di Ezra” não desmentem a tradição. Falam muito em salvar a Europa “dos líderes globalistas que querem destruir sua cultura e suas comunidades”, usam e abusam da expressão “hipoteca social”, promovem palestras sobre os mais variados temas e récitas musicais. Cultos, quase sempre serenos e polidos, alardeiam ser contra a violência. Mas em dezembro de 2011, um militante da CasaPound matou dois comerciantes senegaleses e feriu outros três, num mercado em Florença. 

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