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Por coronavírus, músicos tocam em salões vazios para público online

Em meio à pandemia, streaming e transmissões ao vivo tornaram-se saída para concertos

Por Anthony Tommasini
Atualização:

Assisti no meu computador, em casa, na tarde de quinta feira, uma apresentação da Filarmônica de Berlim transmitida via streaming, tocando Sinfonia, de Luciano Berio. As câmeras mostraram fileiras de assentos. Ninguém. Os músicos, vestidos a rigor, pareciam não saber exatamente o que fazer. No fim, cumprimentaram-se entre si, e então encararam o salão vazio.

Performance na Berlin State Opera transmitida pela internet Foto: Peter Adamik

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Foi uma das apresentações mais profundas e chocantes que já vi. Desde o dia em que a Metropolitan Opera começou a transmitir suas apresentações pelo rádio, nos anos 1930, as formas de disseminação da música se tornaram muito mais sofisticadas. Mas a meta continua a mesma: trazer você (o ouvinte, ou, mais recentemente, o espectador) para dentro do teatro de ópera ou sala de concerto, dando a sensação de quase fazer parte do público “real” nos assentos.

Mas, na quinta feira, aqueles que sintonizaram para assistir a óperas, concertos e apresentações de música de câmara via streaming, de Berlim à Filadélfia, não estavam invejando o público ao vivo. Eles eram o único público.

Respondendo à proibição às aglomerações, uma ampla gama de instituições poderia ter cancelado totalmente sua programação, coisa que muitas fizeram. Mas alguma prosseguiram com a programação prevista, tocando para plateias vazias e transmitindo o resultado para todo o mundo.

Foi um espetáculo estranho e notável: músicos dedicados vestindo fraques para se apresentar para o público em casa. Foi como se a música tivesse entrado em uma nova esfera, com um novo elo entre artista e público — temporário, é claro, mas cheio de implicações para o futuro após a pandemia.

No passado, elogiei as transmissões de rádio e de alta definição como ferramentas poderosas para atender aos fãs da música clássica, e talvez para apresentá-la a quem não a conhece. Ao mesmo tempo, enfatizei que essa é uma forma de arte que deve ser apreciada ao vivo — em salões com acústica natural, quanto menor o público, melhor.

Mas, na quinta feira, depois de assistir via streaming a seis apresentações ao vivo diferentes durante a tarde e a noite, senti-me privilegiado por ser parte desse público exclusivamente online. Escutei com atenção redobrada e gratidão. 

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Esse episódio pode chamar mais atenção para serviços de streaming digital que estão disponíveis há anos. E, quando a crise imediata passar, é possível que tenhamos dado um novo passo e nos acostumado à ideia de que o streaming não é apenas uma alternativa à maneira “correta" de se apreciar a música, mas um suporte viável para apresentações.

Conforme os cancelamentos proliferaram nos dias mais recentes, finalmente explodindo na quinta feira na região de Nova York, os anúncios de apresentações via streaming começaram a se acumular (a emissora pública de rádio WKAR divulgou uma lista completa delas). No intervalo de poucas horas, surgiu uma fartura de alternativas, o que me obrigou a fazer escolhas difíceis. Comecei com a apresentação de Carmen, de Bizet, pela Ópera Estatal de Berlim, que ocorreu à noite na Alemanha, mas de tarde para mim; pode ser vista em rbb-online.de.

Durante o prelúdio da orquestra, Daniel Barenboim tirou dos músicos uma apresentação impecável, precisa. Os cantores não poderiam ter sido melhores: o tenor Michael Fabiano, usando as roupas escuras e o rosto sujo de um incansável vigarista, cantou Don José com energia jovial e um timbre poderoso. A voz da mezzo-soprano Anita Rachvelishvili soou forte e voluptuosa. Uma das artistas de ópera mais emocionantes da nossa era, ela conseguiu cantar com sutil encanto e intimidade, ainda assim sugerindo uma Carmen perigosa e determinada.

Enquanto Carmen estava em andamento, sintonizei periodicamente aquilo que o genial pianista Igor Levit chamava de "concerto caseiro para as redes sociais”: tivemos a sonata Waldstein, de Beethoven, tocada no apartamento dele em Berlim com transmissão ao vivo por sua conta no Twitter. O som do piano ficou um pouco metálico na transmissão, mas o músico estava inspirado e o resultado foi comovente. Não foi ideal, mas teve que bastar, disse ele aos espectadores, até que “possamos nos reunir novamente para repetir a dose na vida real”.

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Então sintonizei no concerto da Filarmônica de Berlim. O lar da orquestra, o teatro Philharmonie, tem assentos em torno do palco, tornando ainda mais óbvias as circunstâncias especiais dessa apresentação. Na sexta feira, a Filarmônica anunciou que todo o conteúdo da sua plataforma Digital Concert Hall estaria disponível gratuitamente.

Simon Rattle comandou um programa que há muito era esperado, mas pareceu feito sob medida para o momento atual: Sinfonia, de Berio, e o Concerto para Orquestra, de Bartok. A obra de Berio — composta em 1968, outro momento de convulsão — é como uma “exploração da memória”, disse Rattle ao público virtual. Com uma orquestra e um grupo de cantores, a obra é um e mais; uma música que retrata o caos.

Depois do intervalo veio a peça de Bartok, que, como Rattle mencionou, foi “composta em meio à 2ª Guerra Mundial por um refugiado moribundo”. De fato, Bartok, depois de fugir da Hungria, vivia em Nova York, sentindo-se deslocado e doente quando compôs a obra, com suas referências musicais ao seu lar, no Leste Europeu. De acordo com Rattle, ele enfrentava questões que os refugiados de hoje ainda vivenciam: “Como levar a um lugar desconhecido o que é profundamente importante para si?” Foi uma apresentação magnífica.

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Um programa da Sociedade de Música de Câmara do Lincoln Center, no pequeno Rose Theater, incluiu o Trio de Cordas de Schoenberg, peça composta depois de sofrer um ataque cardíaco, de assombrosa intensidade e trechos de lirismo agridoce. Uma programação diferente será transmitida via streaming na tarde de domingo no endereço chambermusicsociety.org. No Miller Theater, a pianista Simone Dinnerstein apresentou um programa de obras de Bach com músicos da orquestra Baroklyn.

Bach é sempre emocionante. Mas, neste momento particularmente inquietante, ouvir a cantata Ich Habe Genug — a respeito de alguém que, depois de sentir o abraço do salvador, não se sente mais parte desse mundo conflituoso —, na voz da mezzo-soprano Kady Evanyshyn, foi de arrepiar.

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E Yannick Nézet-Séguin comandou a Orquestra da Filadélfia em seu lar, o Kimmel Center, em apresentações empolgantes e incisivas da quinta e da sexta (a Pastoral) sinfonias de Beethoven, com Jeder Baum spricht, de Iman Habibi, na abertura, para começar sua exploração das sinfonias completas de Beethoven symphonies. Sem a abertura, essa apresentação deveria chegar ao Carnegie Hall na sexta feira, mas todas as apresentações foram canceladas ali até o fim do mês.

Pude ouvir a Pastoral quase inteira, e a apresentação tinha uma energia nova, quase caótica, verdadeiramente rústica, palpável mesmo na tela do computador. No fim, os músicos de ergueram em silêncio, voltaram-se para frente e saudaram o público: nós, o verdadeiro público. / Tradução de Augusto Calil

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