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Por que Obama não dispara?

Existe um ódio racial dissimulado, que sorri politicamente correto à luz do dia e balbucia cólera nas sombras

Por Mac Margolis
Atualização:

A ascensão de Barack Obama na política dos Estados Unidos é impressionante, por qualquer medida. Impressiona tanto quanto a miniindústria de tomos e teorias que brotou para decifrar a meteórica trajetória do jovem forasteiro da franja política norte-americana a protagonista no palco central do país. E mesmo se não vencer o páreo presidencial, Obama já se consagrou como oráculo global, com platéia cativa no Tiergarten. Mas, junto a sua estrela, sobe uma inquietação: será que ele vence o racismo? A dúvida faz todo sentido. Raramente os americanos tiveram tantos motivos para votar nos democratas. A folha corrida do atual governo já é do domínio público: 70% dos americanos desaprovam a atuação da administração Bush e nove em dez acham que o país está "no caminho errado", segundo a última sondagem CBS/Washington Post. O apoio à guerra do Iraque se evaporou e agora o caos do setor financeiro paira sobre a economia real. Resumo do libreto: com os republicanos no leme, os EUA estão à deriva. Eis a tempestade perfeita para a oposição. No entanto, a disputa pela Casa Branca continua estranhamente acirrada; a poucos dias do pleito, apenas 7 ou 8 pontos separam o líder, Obama, de seu rival, o republicano John McCain, segundo a média das pesquisas no site Real Clear Politics. Por que, perguntam os democratas e simpatizantes, Obama não está disparado na frente? Racismo, afirmam os inquietos. "Se ele fosse branco, a eleição seria uma avalanche", disse Harold Ickes, ex-estrategista de Jesse Jackson, famoso reverendo negro que na década de 80 disputou a presidência. Sem dúvida, preconceito e ódio racial ainda permeiam parte da sociedade americana. Quando Obama nasceu, em 1961, o preconceito ainda andava de capuz e incendiava cruzes nos grotões do Sul. Passei minha infância nos anos 50 e 60 na Carolina do Norte e Virgínia, onde respeitadas famílias ostentavam no quintal as "barras e estrelas", a bandeira dos confederados, o lado escravagista do país que perdeu a Guerra Civil, mas não a pose. Ultimamente há todo um gênero de análise política que bate no mesmo tambor. Reza a cartilha racial que existe um ódio, subterrâneo e dissimulado, que sorri politicamente correto à luz do dia e balbucia cólera nas sombras. Esse racismo silencioso confunde os sociólogos e dribla até as pesquisas, como as da Gallup e da Zogby, mas segundo os analistas, está sempre à espreita, marcando hora para golpear qualquer negro que ouse levantar a cabeça. Assim, o racismo é o bicho-papão do discurso político do momento. Imensurável, vira ativo perfeito para especulação alheia. Sem lastro na estatística, cresce como um derivativo em Wall Street. Mas como toda bolha, a do racismo carece de fundamentos. Mais ainda nestas eleições. Explico. Barack Hussein Obama, todos sabemos, já fez história como o primeiro negro com reais chances de chegar à presidência dos EUA. Mas também é um camaleão. Não é uma questão de sua cota de melanina (filho de pai negro e mãe branca) nem de sua aura de candidato "pós-racial", mas sim da carreira, deliberadamente construída em apoios e aliados diversos e nem sempre esperados. Aliou-se ao polêmico pastor Jeremiah Wright não por afinidade ideológica, muito menos por simpatia a seus impropérios racistas, mas porque sua igreja reunia a nata da comunidade negra de Chicago, eleitorado fundamental para seu sucesso político na cidade. E quando Wright começou a estorvar, dispensou-o com a mesma matemática. Em seu discurso na convenção do Partido Democrata, Obama fez apenas menção discreta ao padroeiro de movimento negro, Martin Luther King, e só no final de sua fala de 50 minutos. O bom entendedor dispensa intérprete: Obama pode ser mutuário do legado da luta de King ou da congregação de Wright, mas não é cria de nenhum deles. Tanto que mereceu certa desconfiança de alguns líderes tradicionais da política negra, entre eles o conhecido militante Al Sharpton: "Me irrita quando alguns líderes negros que não vieram do movimento de direitos civis, sejam Barack Obama, Colin Powell ou Tiger Woods, se comportam como se tivessem subido sozinhos e aberto as portas por conta própria". Mesmo que Obama não se porte como um estandarte do movimento negro, nada garante que o eleitor americano não vá entendê-lo assim. Ele goza do apoio e de rios de dinheiro dos jovens, tanto brancos quanto negros, da classe média e classe média alta urbana. E nos cafundós da Pensilvânia ou Geórgia? E o que dizer do "efeito Bradley"? Thomas Bradley, o popularíssimo candidato negro ao governo da Califórnia em 1982, após liderar todas as pesquisas até a véspera da eleição, perdeu para um branco. Desde então virou lugar-comum falar do "efeito Bradley", a zebra originada pelo eleitor que se declara indeciso, mas tem voto racista. Como não desconfiar de que a mesma dissimulação não esteja ocorrendo contra Obama? Há controvérsias. Mais importante, os Estados Unidos mudaram. A derrota de Bradley aconteceu há um quarto do século, numa América bem mais conservadora e culturalmente careta. Desde então, os EUA passaram por um furacão que deixou os costumes e a política de ponta-cabeça. Abriram-se as portas para toda uma nova geração, incluindo os negros. Hoje, 81% dos negros acima dos 25 anos têm o segundo grau completo, para meros 28% em 1976. O número de negros pobres caiu de 42% em 1966 para 23% hoje. Ao mesmo tempo, o número de candidatos negros disparou, aumentando oito vezes desde 1970 - a maioria deles eleita pelos outrora redutos racistas do Mississippi, Alabama e Louisiana. No fundo, a insistência do enredo monótono do racismo trivializa a política americana, como se não houvesse nenhum motivo para duvidar de Obama a não ser a cor de sua pele. Esqueça-se sua pouca idade e currículo político modesto (dois mandatos como deputado estadual e um incompleto no Senado nacional), ou a guinada radical, e mal explicada, que deu sobre o surge, o aumento de tropas no Iraque (primeiro radicalmente contra, depois a favor). E, no escurinho da cabine de votação, pode pesar muito menos o racismo que o ranço contra os intelectuais que ainda bate forte no peito de muitos americanos. Pode-se chamá-lo de efeito Harvard. Virou clichê tachar os EUA de racistas, inclusive no Brasil. Pudera. Há sangue e bílis suficiente dos conflitos racistas e étnicos para manchar quase todos os capítulos da história americana. Mas os clichês também caducam. Quem sabe não é hora de mexer com a cartilha do racismo à americana. É uma boa pauta para a era Obama. *Mac Margolis é correspondente da revista Newsweek no Brasil

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