Por uma boa vida

Redução da jornada seria conquista histórica, desde que se afaste o fantasma das horas extras

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Por Monica Manir
Atualização:

Se a questão é labuta diária, Suzanna Sochaczewski é totalmente pro-life. Socióloga do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, ela não condena quem passa grande parte da vida numa empresa. Está há 23 anos no Dieese. Mas insiste que não se deve viver para trabalhar, mas trabalhar para viver. E bem, "porque a produção de riqueza dá para todo mundo". Para tanto, também é necessário ser pro-choice, ou seja, saber escolher o melhor para si e para a sociedade, questionando serviços insalubres, penosos, desumanos, sem sonhos próprios, arrastados por horas a fio. Não à toa Suzanna defende a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais, tema central dos atos organizados pelas centrais sindicais nesse 1º de maio. Os patrões vão querer cortar salário? "Ao contrário, poderiam até dar um aumento", diz. Problema são as horas extras. Em 1998, quando a jornada caiu de 48 para 44 horas, elas praticamente duplicaram nas empresas. Seria trocar 6 por meia dúzia. Pior: 6 por 12. Um perigo para a boa vida. O movimento sindical pressiona os sindicatos patronais e o Congresso a diminuir a jornada semanal para 40 horas, sem corte nos salários. A idéia é possibilitar emprego para um número maior de pessoas. Vai possibilitar? Sim. Pelos cálculos do Dieese, a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 semanais teria o impacto potencial de gerar em torno de 2.252.600 novos postos de trabalho. Ou seja, mais de 2 milhões de pessoas seriam absorvidas pelo mercado de trabalho interno, o que aumentaria a produção, gerando um círculo virtuoso. O desemprego, sim, é que alimenta um círculo vicioso, ruim para a economia. Quem não trabalha recebe seguro, rouba, se endivida, faz muito bico que não dá para comprar nada. Pessoas empregadas voltam a consumir no supermercado, depois juntam dinheiro, adquirem uma geladeira. O emprego é agilizante, potencializador do mercado interno. Mas não pode ter hora extra do jeito que tem. Quando a Constituição de 1988 reduziu a jornada legal de trabalho de 48 para 44 horas semanais, o número de horas extras aumentou? Um mês antes de promulgada a jornada semanal de 44 horas, o porcentual de trabalhadores que fazia hora extra era de mais ou menos 25%. Um mês depois, esse porcentual pulou para cerca de 47%. Como cada um começou a trabalhar quatro horas a menos na jornada semanal, a estratégia patronal para não contratar as pessoas necessárias para cumprir esse gap foi aumentar estupidamente o oferecimento de horas extras. Por quê? Porque o pagamento dessas horas é ligeiramente mais barato do que a contratação, 1,99%. Pouquíssimo, pouquíssimo! A redução da jornada não foi benefício para os trabalhadores naquele momento, a não ser que tivesse sido acompanhada de proibição radical ou de fiscalização muito severa do número de horas extras. Isso não se pensava direito na época. Experiência assim nunca tinha sido feita, de o país inteiro passar para 44 horas semanais. Seria diferente agora? O trabalhador aprova a hora extra? Individualmente, não como classe, o trabalhador tem mais dinheiro no bolso com a hora extra. Como o salário dele é muito baixo, ele aceita. Na verdade, isso não traz benefício a ninguém. Para os empresários, diminuir o número de horas de seus trabalhadores oferece vantagens. Os que já experimentaram isso provam que é verdade. Quem trabalha menos tempo fica mais descansado, mais satisfeito, mais criativo, sofre menos acidentes de trabalho. Para o trabalhador, se você mexe na jornada e não no salário, é um ganho. Os sindicatos afirmam que, com a diminuição da jornada, o trabalhador poderá investir na qualificação. Em função dos salários baixos, e com mais tempo livre, a pessoa não vai procurar um segundo emprego? Não. O trabalhador tem a compreensão de que está ganhando mais se trabalha menos horas. Ele começa a entender que existem ganhos que não só os monetários, tem a noção de que pode usar isso para a sua saúde, para a sua qualificação. Você já visitou as faculdades que oferecem cursos noturnos? A maior parte dos alunos está exausta, muitos dormem, saíram de casa às 6 da manhã e à noite precisam estar alertas para receber novas informações. Vão aprender melhor se trabalharem menos tempo. Em vários países existem pesquisas de ganhos de saúde, de educação, de vida familiar. Em um livro da CUT chamado Hora Extra, há uma charge com o seguinte diálogo entre mãe e filho: "Mãe, tem um desconhecido dormindo na sua cama. Não é desconhecido, não, meu filho. É seu pai, que não fez hora extra". Quantos empregos seriam gerados com o fim das horas extras? O fim das horas extras, ou mesmo sua limitação, poderia gerar mais ou menos 1 milhão de postos de trabalho. O mais-ou-menos é porque só existe o cômputo das horas extras legais. Há muitas ilegais. Em que setores aumentaria mais o número de empregos? O industrial faz muitas horas extras, mas, como é maior a jornada dos setores de serviço e comércio, maior será o número de pessoas beneficiadas. Esses setores são menos fiscalizados, então dá mais margem para que sejam feitas coisas fora do âmbito da lei. Desde quando o cidadão reivindica mais tempo fora do trabalho? A questão da redução da jornada de trabalho é uma luta histórica do movimento sindical e dos trabalhadores. Na Idade Média, o "expediente" era sazonal: tinha o tempo da colheita, da construção, da tecelagem. Quando há 500, 400 anos a sociedade começou a se organizar de forma capitalista para a produção, uma das primeiras mudanças foi a jornada de trabalho regulamentada em cima do cotidiano. A domesticação da classe trabalhadora para um tempo de serviço regulamentado foi muito violenta, houve uma resistência grande, mesmo porque as jornadas eram longuíssimas, de 14, 15, 16 horas. Não se reclamava disso? Reclamava-se, mas era um momento em que uma sociedade estava se desmontando, se desestruturando, e a outra ainda não se mostrava inteiramente organizada. Havia hordas de pessoas na Europa de lá pra cá sem trabalho, sem comida. Quando se encontrava trabalho, percebia-se uma dupla atitude em relação a isso. De um lado, alguns imediatamente usavam a oportunidade para sobreviver. Outros se recusavam por causa das condições terríveis oferecidas. O primeiro grande motivo para a redução da jornada se tornar uma das bandeiras mais importantes dos trabalhadores foi que ela começou a se estender de tal maneira que chegou perto de ameaçar a vida. Com o aumento da quantidade de riqueza produzida, a classe trabalhadora passou a reivindicar uma jornada menor, em média de oito horas, para que pudesse usufruir de tempo livre. Existe consenso em torno das oito horas diárias? Alguns pensam em menos porque uma coisa é você trabalhar oito horas em casa, parando um pouco, tomando um cafezinho, botando o pé para cima de vez em quando. Outra é trabalhar oito horas batido, com uma de descanso no almoço. Com as grandes transformações no processo de trabalho e de produção de 1970 para cá, o ritmo de trabalho se intensificou de uma forma muito, muito, muito violenta. Os novos equipamentos, os computadores ditam esse pique de um jeito mais bem planejado, a ponto de retirar todos os intervalos em que o cara podia sair e fumar um cigarro, ir ao banheiro, dizer oi para o compadre do lado. O ritmo foi se intensificando e as brechas de descanso, diminuindo. Mas apertar botões não é mais tranqüilo do que mexer com um tear, por exemplo? Sim, mas apertar botões não significa só apertar botões. Essa transformação no mundo do trabalho de um lado retirou dele seu caráter pesado e muitas vezes perigoso, insalubre. Infelizmente, ela acrescentou uma atenção redobradíssima. Se você aperta um botão errado ou aperta o certo em hora imprópria, desencadeia um problema não necessariamente visível de imediato. Antigamente, o produto caía no chão e quebrava. Hoje, ou a máquina enguiça, ou pára completamente de funcionar, ou vai aparecer uma coisa completamente esquisita lá na frente. A tensão que vem junto é muito grande. Outra coisa: os trabalhadores passaram a receber um negócio que os patrões chamaram de "enriquecimento do trabalho". Em vez de você tomar conta de uma máquina só, agora passa a trabalhar com três ou quatro ao mesmo tempo. Também cortaram o número de trabalhadores que cuidavam da manutenção e da limpeza. Quem só cuidava da máquina agora faz a faxina antes e depois, e a manutenção até certo ponto. Nenhuma dessas tarefas, tomadas individualmente, é cansativa, perigosa, mas, quando se junta tudo isso, a pessoa fica exausta. E ainda leva trabalho para casa... Sim. Muitas empresas invadem o tempo livre do funcionário prometendo prêmios, ganhos, ameaçando se não tiver iniciativa. Tem empresas que dão para o trabalhador um caderninho para ele botar do lado da cama. Se tiver um sonho bom, acorda e escreve imediatamente. Chamamos isso de mais-valia dos sonhos. Nem sonhar o cara pode sonhar em paz. O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, da Força Sindical, diz que "não se faz esse tipo de acordo na desgraça". O crescimento da economia favorece acordos coletivos para redução de jornada sem corte de salários? Ele tem toda a razão porque, na época de contenção de despesas, de recessão da economia, as empresas estão passando um momento difícil também. Com certeza o momento atual favorece a reivindicação. É bom lembrar que a produtividade do trabalho mais que dobrou nos anos 90. Isso significa que você produz mais riqueza com menos horas de trabalho. Se tenho uma fábrica de sapatos e só eu resolvo reduzir a jornada, provavelmente não serei competitivo. Mas, se for uma lei, terei de obedecer, o meu vizinho também, todos os que têm fábrica de sapato vão fazer o mesmo. E poderei aumentar o salário. Quando se calcula o custo de produção, 30% é matéria-prima, 20% é energia, 10% é investimento e menos de 10% é salário. Se aumentar um pouquinho, aumenta quase nada. Qual é o papel dos sindicatos nesse momento histórico? O sindicalista pensa muito bem, viu? Não é nada bobo. Acontece que, logo que houve essa transformação nos últimos 30 anos do processo de trabalho, ocorreu uma mudança de relação de forças muito importante, pois a disponibilidade de emprego ficou menor. Para ganhar uma vaga, começamos a abrir mão de uma porção de coisas. Se todas as centrais sindicais se juntarem e fizerem uma campanha unificada pela redução da jornada de trabalho, isso significa uma melhoria das condições de vida da população em geral. Antigamente, reis e rainhas viviam tudo encafuado em seus castelos e o povo era visto de longe. Hoje, a riqueza e a miséria estão mais visíveis. Os sindicalistas sabem que existe a possibilidade de uma distribuição da renda sem deixar ninguém pobre. Não é tirar dinheiro das pessoas. É produzir de uma maneira muito eficiente e distribuir isso sob a forma de salário e de políticas universais de saúde, educação e moradia de boa qualidade. A população confia nos sindicatos? Aqueles que trabalham no emprego formal vêem o sindicato muito bem, são beneficiários diretos dessa representação. Por lei, no Brasil, o sindicato só pode representar os que têm emprego formal. Acontece que ele está aumentando a abrangência da sua intervenção porque uma parte grande da população que trabalha não tem representação. Estuda-se um atendimento informal para eles. Existe uma reclamação grande com relação ao imposto sindical. O sindicato precisa de um financiamento. Duas mil, 5 mil, 10 mil pessoas se beneficiam da negociação feita pelo sindicato. Quando só existe a contribuição de filiados, ela provavelmente cobre 10% dos gastos que se tem com a campanha, a negociação, a explicação, o estudo que precisa ser feito para saber o que está acontecendo. Se tem a contribuição negocial, que é a proposta do movimento sindical, mas que o Congresso ainda não aprovou, provavelmente o trabalhador que está sendo beneficiado por essa negociação vai pagar o valor sem reclamar uma vez por ano. Essa contribuição negocial não necessariamente precisa passar pelo Estado, pode ser direto. Inclusive, existe uma proposta de as próprias empresas recolherem e pagarem para o sindicato. Pronto, acabou! As empresas não reclamam de pagar a contribuição para o sindicato porque sabem que, sem ele, não há esses edifícios, não há qualificação, não existiria a própria negociação. O sindicato também precisa contratar seus assessores. Sem financiamento, você não faz nada. A vida, hoje, só faz sentido se a pessoa puder trabalhar? Sim, mas não em qualquer tipo de trabalho e pela vida toda. Criança não tem que trabalhar. Velho, só se quiser. Não tem que trabalhar todos os dias da semana, como já foi o caso, nem em serviços penosos, insalubres. O serviço de pintura foi um dos primeiros a ser automatizado e os trabalhadores concordaram. Quem trabalha em pintura, depois de cinco anos, fica sem pulmão, mesmo usando máscara. Então é bom que o robô faça isso. Os trabalhos pesados têm de ser automatizados. Para isso foi caminhando a humanidade. Não pode ser por sobrevivência. E isso você só consegue se produzir riqueza, isto é, serviço, educação, roupa, tudo o que você pode imaginar, numa quantidade e facilidade tais que daria para a humanidade viver talvez não luxuosa, mas confortavelmente, sem deixar ninguém de fora, para que todos possam usufruir desse momento histórico em que a gente está. O trabalho tem de ser, no século 21, uma boa vida.

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