Possível candidatura de Collor reacende temor na área cultural

Ex-presidente anunciou interesse em um improvável retorno ao Planalto

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Por Sérgio Augusto
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Logo nas primeiras cenas do filme Terra Estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas, uma senhora (Laura Cardoso) enfarta e morre ao ouvir uma notícia horripilante pela TV. Na peça Coração Brasileiro, de Flávio Marinho, outra senhora, interpretada por Bia Nunes, também enfarta e estica as canelas ao ouvir a mesma horripilante notícia. 

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O ex-presidente da República e senadorFernando Collor de Melo (PTC-AL) deve ser um dos nomes nas eleições 2018 Foto: Wilton Junior/ Estadão

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O filme é de 1995, a peça é de 1999. A notícia, de 16 de março de 1990, não matou só aquelas duas personagens. Fora da tela, muito mais gente passou mal, enfartou e até suicidou-se por causa dela. Transmitida pela própria ministra Zélia Cardoso de Mello, empossada na véspera pelo novo presidente da República Fernando Collor de Mello, foi um choque de maior impacto que o anúncio do quinto Ato Institucional do regime militar, 22 anos antes. Afinal, o tenebroso confisco embutido no Frankenstein econômico “para aniquilar a hiperinflação”, codinome Plano Collor, atingiu como um raio praticamente toda a população brasileira. 

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Ao ver e ouvir de novo as convolutas explicações da ministra sobre o confisco, as plateias do filme e da peça, vítimas também de outras empulhações do programa econômico collorido, reagiam com risadas nervosas, como se ainda duvidassem um pouco que aquela tunga jamais se repetiria entre nós. De fato não se repetiu. Mas seu mentor, enxotado da presidência em 1992, anseia retornar ao Planalto. Semana passada, Collor, senador desde 2007 (por Alagoas, claro), anunciou-se pré-candidato à sucessão de Temer, pelo PTC (ex-PRTB), seu sétimo partido em quase quatro décadas de carreira política, uma das mais volúveis da história da República.

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Com a volta do desemprego, da febre amarela e do Collor, eu me pergunto se não vivemos uma nostálgica ‘saison en enfer’. A febre, que se acreditava erradicada no País, voltou com menos pressa; demorou 60 anos. Collor, mais indócil, apenas 26. 

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Não há motivo para alarme. Parece mais fácil Jorge Paulo Lemann passar pelo buraco de uma agulha do que Collor se reeleger. Até mesmo a classe artística – a mais rápida e frontalmente atingida pelos desdobramentos de seu plano econômico (quase arruinou o cinema brasileiro, extinguiu a Funarte e outras instituições culturais, encheu a bola da música breganeja, onipresente no hit parade da Casa da Dinda) – já se convenceu disso. 

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Mas como na política brasileira um raio pode cair duas vezes no mesmo lugar, recomenda a prudência que não esqueçamos do imortal conselho de George Santayana: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. Acontece que muita gente não consegue lembrar o passado porque não o viveu. Para as novas gerações, Collor é uma vaga sombra do passado, envolta em brumas perturbadoras. 

Cria da oligarquia nordestina, ele foi o introdutor na política brasileira do candidato como produto de marketing – a estampa acima da substância. Enganou multidões com um discurso oportunista e moralizante, inflado de promessas bombásticas, como fulminar a inflação da noite para o dia, desidratar a máquina do Estado, modernizar a economia e tirar o país do atraso, proteger os humildes, pôr todos os corruptos atrás das grades e os “marajás” do serviço público no olho da rua. Parecia um confiável paladino do neoliberalismo – só fachada. 

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“É rico, não precisa roubar”, alegavam os primeiros empolgados com o “caçador de marajás” vendido à exaustão pela mídia. Não conheciam ainda (ou bem) a figura de Paulo César Farias, seu tesoureiro de campanha, seu grão-vizir financeiro. 

Aquele olhar rútilo e aquela mussoliniana fanfarronice não deveriam tapear ninguém com um mínimo de vivência histórica, política e psicanalítica. Mas tapeou. Com a inestimável ajuda da TV Globo, que, como é sabido, manipulou as imagens do último debate eleitoral entre o “furacão das Alagoas” e Lula, na noite de 14 de dezembro de 1989, impondo uma no mínimo discutível desvantagem ao candidato do PT. 

Dois dias depois, em sua coluna na Folha, o perspicaz Paulo Francis foi taxativo: “Digam o que disserem as pesquisas de opinião, Collor deu uma lavagem em Lula no debate de anteontem”. Ainda ignorava a pilantragem engendrada na ilha de edição da emissora, mas mesmo que dela soubesse não mudaria sua opinião sobre o petista e sua eventual gestão presidencial. Fazendo eco com a propaganda collorida, Francis e talvez a maioria de seus leitores acreditavam que as “ideias radicais” de Lula “trariam as greves e o caos”, “fariam o País andar para trás”. 

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Na bola de cristal do colunista, Lula, no Planalto, criaria “o seu DIP” (Departamento de Propaganda do Estado Novo getulista), estabeleceria a censura, governaria “com um Politburo à margem do ministério e do legislativo”. O petista teve dois mandatos para nos impingir todos esses horrores, mas não o fez. Lula não pode mais voltar ao poder. Collor não só já pode como o deseja. 

Teria de mudar seu estilo de campanha, apagar a imagem que dele ficou: um almofadinha exibicionista, adepto do consumo conspícuo, um “Jânio Quadros yuppie”. E sobretudo não ceder à tentação de ludibriar o eleitorado em sua propaganda partidária. Quase ao final da campanha de 1989, seu promoter apropriou-se da música Brasil, de Cazuza, sem consentimento do autor. Com Cazuza entre a vida e a morte num hospital de Boston, coube a seus parceiros George Israel e Nilo Romero levar o caso à Justiça. O processo não deu nada. Bem a cara do Brasil.

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