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'Potlatch' parte de lugares incomuns na poesia brasileira

Novo livro de Guilherme Gontijo Flores é um percurso original pelas emoções humanas

Por Ygor de Goes Sena
Atualização:

Potlatch é um livro de poesia ao mesmo tempo simples e grandioso. Ao abordar, de forma integrada e a partir de diferentes culturas, tanto sentimentos humanos quanto temas-chave para a definição da nossa vida em sociedade, oferece ao leitor percurso por todo o círculo cromático das emoções. E, ao fim dessa caminhada poética, contemplamos outras maneiras de pensar – sobre tudo. Já há algum tempo, nos acostumamos a ouvir sobre todas as espécies de crise: pandêmica, política, urbana, econômica, climática. Proliferam também discussões sobre as crises do jornalismo, da arquitetura, da arte, da filosofia e a da poesia, para citar alguns exemplos. Aqui, a crise assume o sentido de fazer um balanço dos novos, ou melhor, recorrentes desafios contemporâneos de cada ofício para os quais ainda não há uma resposta clara.

Pintura ilustra a cerimônia do potlatch de 1894 em Tsaxis, intitulada 'O Walas'axa', um estudo sobre os índios Kwakiutl. Foto: Wilhelm Kuhnert

Qual seria o lugar da poesia hoje? E o que dizer de seu papel em um mundo de reviravoltas? À luz destas questões, Potlatch representa caminho original no cenário poético brasileiro contemporâneo. Nascido em Brasília, Guilherme Gontijo Flores, hoje com 38 anos, é professor de latim na Universidade Federal do Paraná (UFPR), poeta e tradutor. Com esse novo livro, amplia a sua vasta coleção de obras de poesia já publicadas, como brasa enganosa (Patuá, 2013), Tróiades (Patuá, 2015), l’azur Blasé (Kotter/Ateliê, 2016), ADUMBRA (Contravento, 2016), Naharia (Kotter, 2017), carvão : : capim (Editora 34, 2018), avessa: áporo-antígona (Cultura e Barbárie/quaseditora, 2020) e Todos os Nomes Que Talvez Tivéssemos (Kotter/Patuá, 2020). Nota-se ao longo da obra o caráter coletivo de elaboração dos poemas do autor, muitos deles dedicados a poetas contemporâneos. E, para além do diálogo estabelecido entre seus pares, Guilherme Flores lista ao final do livro referências filosóficas, históricas, bíblicas e populares utilizadas na construção de algumas de suas poesias. Dessa forma, passado, presente e futuro estabelecem uma continuidade entrelaçada. Essa relação temporal perpassa as reflexões sobre a humanidade, sobre a natureza, o nascimento, a morte, a memória, o tempo, a beleza, o amor e sobre todas as coisas que constituem o viver. Wega é o poema inaugural de Potlatch, elaborado a partir de cantos funerários do povo xona, residente no Zimbábue. A canção é um convite à reflexão sobre a vida e a morte à la memento mori, famosa expressão estoica de “lembre-se da morte”.  Os versos “Todas as tribos que se foram / acolham aqui seu filho / a ele acolham” parecem adquirir mesmo um sentido de súplica quando os relacionamos com os versos do poema Crianças de Kozara, baseado nos campos de concentração para crianças construídos pelo Estado Independente da Croácia durante a 2.ª Guerra

O escritor Guilherme Gontijo Flores Foto: Rafael Dabul/Todavia

A violência presente na relação entre os seres humanos aparece sintetizada também no poema Matina, segundo os versos “um dedo aponta a chacina do dia, / encoberto de musgo e feno e pó”.  Diante da perplexidade brutal, o único caminho é seguir adiante. Estala o Fogo é particularmente bonito por remeter sua forma poética a uma chama em movimento. Entre outras interpretações, seus versos clamam por uma postura ativa diante das dificuldades: “Num tempo em que as palavras ardem, vivo / pensando um meio de moldar-me em fogo, / de achar-me um povo, um mar onde me afogo, / porém o próprio tempo segue esquivo[...]”.  Tal engajamento persiste por força maior, pela vida que deve sempre prosseguir, mesmo que em meio à desesperança. Vide os versos de Te Envio uma Voz, inspirados em uma prece xamânica: “Me escute, / não por mim, / mas por meu povo: / estou velho”. De forma bastante emblemática, Potlatché o poema que encerra a obra e dá o título ao livro. Trata-se de uma cerimônia de certos povos da América do Norte em que se realizava, nos casos extremos, a destruição de riquezas como forma de demonstrar superioridade diante dos rivais. 

Liderança histórica dos povos indígenas, o escritor, jornalista e ambientalista Ailton Krenak Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Essa prática foi abolida no século 19 pelo governo canadense, que a considerou o maior obstáculo para tornar os nativos civilizados. No meio de tantos caminhos possíveis, o novo livro de Guilherme Flores nos leva a pensar sobre os sacrifícios realizados pela humanidade e a que preço.  Assim, através da poesia, o autor amplia as possibilidades da pergunta de Ailton Krenak no livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo: somos mesmo uma humanidade?

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