Pra indonésio ver

A pena capital interessa a um presidente que precisa se posicionar entre um Mussolini e um covarde

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Por Cristiane Vieira Teixeira
Atualização:

Localizada no descolado bairro de Kreuzberg, ponto central da efervescente cena artística berlinense, a Organização Não Governamental Watch Indonesia ocupa um apartamento no térreo de um prédio antigo. Instalações modestas, decoradas com artesanato e fotografias da paisagem e do povo indonésios, convidam a divagar num universo exuberante, fantástico até, mas que nos últimos meses tem despertado mais perplexidade que deslumbramento. O motivo: a insistência do país em aplicar e reaplicar, inapelavelmente, a pena capital, que na quarta-feira acabou por fuzilar outros condenados por tráfico de drogas, entre eles o brasileiro Rodrigo Gularte.

Alheio: Gularte não teria ideia de que seria morto e insistia que estava indo para o Brasil Foto: EFE/FRANCES MAO

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O alemão Alexander Flor, 51 anos, co-fundador e co-diretor da Watch Indonesia, esteve pela primeira vez no país asiático 25 anos atrás, ao concluir a graduação em tecnologia ambiental. De volta a Berlim, fundou com ativistas indonésios a ONG que também há 25 anos luta por um sistema democrático efetivo e pelo respeito aos direitos humanos no maior arquipélago do mundo.

O ativista recebeu o Aliás num pulôver que lhe conferia a devida elegância de um ambiente profissional, mas com os cabelos desregrados e a face avermelhada. Acabara de retornar de uma manifestação pela liberdade de expressão na Indonésia, realizada diante da embaixada do país na capital alemã. Na conversa, ele dividiu preocupações, críticas e questionamentos referentes à polêmica decisão do governo de Jacarta de executar Gularte, quatro nigerianos, dois australianos e um nativo. 

Qual a sua opinião sobre as execuções na Indonésia?

Essas execuções são assustadoras porque representam uma nova política da Indonésia. A pena de morte existe há muitos anos no país, mas não era efetivada. Ou seja, as pessoas eram condenadas, mas não executadas. Desde a posse de Joko Widodo em outubro do ano passado, o caminho é avançar com a pena capital, especialmente aquela imposta contra os traficantes. Ele popularizou muito a guerra contra as drogas e, infelizmente, entre a população da Indonésia, isso cai muito bem. É preciso entender que o presidente anterior, Susilo Bambang Yudhoyono, foi considerado um covarde, incapaz de se impor, enquanto o candidato concorrente do atual presidente durante a eleição, Prabowo Subianto, faz o tipo machão, uma espécie de Mussolini indonésio. Subianto é ex-general de uma unidade da elite militar indonésia, genro do então presidente Haji Mohamed Suharto, que governou o país de 1967 a 1998. Com o fim da ditadura Suharto, Subianto, na época um dos militares mais poderosos do país, foi dispensado do Exército por causa de incontáveis violações dos direitos humanos atribuídas a ele. Mas isso foi há muitos anos e as pessoas esquecem tudo rapidamente. Ele continua popular. Widodo teve que se posicionar entre os dois polos, o Mussolini e o covarde, e tenta, com métodos populistas, rotular-se como homem forte.

De onde vem esse apoio popular ao fuzilamento de traficantes?

Avançar com a sentença de morte é, aos olhos da grande maioria, um sinal dessa força. Quando se diz que as pessoas que vendem heroína ou outras drogas “destroem os nossos jovens”, isso parece bastante óbvio, especialmente nas áreas mais remotas. Essas pessoas não têm nenhuma experiência com drogas, não conhecem esse cenário e tampouco sabem quem são esses jovens consumidores. Além disso, dos dez indivíduos que inicialmente estavam na lista de morte, nove eram estrangeiros, e tomar medidas contra estrangeiros também é popular na Indonésia. A população gosta deles como visitantes, mas tudo o que funciona mal na Indonésia é considerado culpa dos de fora, especialmente quando os preços sobem. O consumo de drogas é visto no país como produto de importação. A visão é a de que, sem os estrangeiros, não haveria heroína, considerada uma influência americana.

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Um dos estrangeiros era o brasileiro Rodrigo Gularte, que, apesar de diagnosticado como esquizofrênico, foi executado. Essa decisão encontra respaldo na lei?

Somos basicamente contra a consolidação da pena capital. Mas, além de tudo, o caso do Rodrigo foi malconduzido, agiu-se contra a lei e o direito. Baseado no que verificou o perito, não se pode presumir que o acusado poderia acompanhar o processo devido à sua doença. E impor tal sentença a alguém que não sabe do que se trata e não pode se defender adequadamente com todos os meios é pouco convincente, ilegal e desumano.

O advogado de Gularte entrou com recurso em que pedia a transferência de guarda, anulação da pena e internação hospitalar do brasileiro. A decisão foi marcada para o dia 6 de maio próximo e, ainda assim, ocorreu o fuzilamento. Afinal, o processo já havia sido concluído ou não?

Isso mostra simplesmente que a vontade de exercer o poder e dar o exemplo era muito mais importante do que a lei e o direito que, nesse caso, foram mal empregados, ignorados, desrespeitados. A lei diz que tais procedimentos devem ser levados a sério. Quando um presidente declara rejeitar pedidos de clemência de condenados sem nunca ter lido o texto, não precisamos mais falar sobre o texto.

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O francês Serge Atlaoui também estava no corredor da morte e terá seu último recurso analisado. Foi retirado da lista de execuções. Isso se deveu à pressão do governo francês, já que o presidente François Hollande declarou, no último sábado, que a Indonésia poderia enfrentar represálias da Europa?

Dado que entre os executados estavam também dois australianos e um brasileiro, isso significaria que a influência da Austrália e do Brasil é menor que a da França, o que não posso avalizar. Um bom relacionamento com a Austrália, o maior país vizinho, é vital para a Indonésia. Também não faz sentido desvalorizar o diálogo com o Brasil, visto como futuro parceiro no contexto dos BRICs. Paralelamente ao francês, uma filipina (Mary Jane Veloso) foi poupada, e a influência das Filipinas na Indonésia é supostamente muito baixa. Há indícios que levaram essa mulher a ter esse respiro. E creio que existam, no caso do francês, consideráveis dúvidas jurídicas, que a Justiça indonésia não pôde ignorar. De qualquer forma, o julgamento do brasileiro estava concluído e não houve nada de novo nas últimas semanas. Temo que a decisão sobre o francês e a filipina seja, em última análise, ignorada. 

O Brasil chamou de volta o embaixador em Jacarta. A Austrália repetiu o gesto, considerado dura represália na linguagem diplomática. Porém, não houve resultados. Considera a retirada dos diplomatas uma reação forte o suficiente para a gravidade da situação?

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Não sou diplomata, assim não sei julgar adequadamente a força desse canal. Diz-se, de fato, que é uma carta de trunfo na diplomacia chamar o embaixador de volta. Mas todos sabemos que é questão de tempo até as relações diplomáticas serem retomadas ou um novo embaixador ou sucessor ser enviado. 

O Brasil tem uma relação bilateral da ordem de US$ 5 bilhões com a Indonésia. Esse caminho poderia ter ajudado, quando todos os meios diplomáticos se mostraram insuficientes?

Na verdade, o sinal veio do outro lado. A Indonésia disse ao Brasil: “Se vocês continuarem a interferir na nossa política, não compraremos mais nenhum equipamento militar de vocês”. Não foi o Brasil que anunciou, “imporemos sanções e não lhes venderemos mais os aviões da Embraer”. O mais importante seria conduzir um trabalho educacional entre a população, mas também entre os políticos. Conscientizar sobre as razões pelas quais a pena de morte é cada vez mais condenada no mundo. O presidente simplesmente acha procedente deixar as pessoas serem mortas e grande parte da população o apoia. 

A legislação indonésia é considerada das mais rigorosas do mundo. Isso é positivo ou negativo?

Leis similares existem em outros países asiáticos. Também na Malásia e na Cingapura há pena de morte para traficantes de drogas. No entanto, teria maior confiança no Judiciário de Cingapura do que no da Indonésia. Em um país onde os juízes e os policiais são corruptos, não posso confiar no estado de direito. Casos em que se descobre que plantaram drogas na bagagem de alguém... Militares e policiais indonésios administram discotecas onde se servem comprimidos de ecstasy em bandejas de prata. Há casos de filhos de políticos de alto escalão pegos com drogas e nada aconteceu com eles. Foi divulgado por um jornal, não houve consequências. Juízes, peritos e a polícia podem ser comprados. Evidências podem ser falsificadas, um julgamento pode ser negociado. Quem tem muito dinheiro consegue comprar um juiz. Quem não tem dinheiro perdeu.

O senhor acha que a pena de morte pode resultar na redução do tráfico de drogas?

Não. Acredito que está internacionalmente comprovado que não há um efeito intimidador. A meu ver, não se tratou realmente da “guerra contra as drogas“ na Indonésia, como o governo sempre afirmou. Por exemplo, os dois australianos executados foram capturados em Bali. Vinham de Bangcoc e, como estavam em trânsito no aeroporto, não tiveram o mínimo contato com a população local . Eles queriam vender heroína na Austrália, não eram um perigo para os jovens indonésios.

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O governo apoia de alguma forma a recuperação de viciados em drogas no país?

Esse é um problema de luxo na Indonésia. Quem consome deve ter dinheiro para comprar essas drogas, o que a maioria não tem. Um problema diário em relação a isso, que não custa muito dinheiro e contra o qual ninguém faz nada são as crianças que cheiram cola. O uso de solventes como alucinógenos é ainda muito comum em países em desenvolvimento, principalmente entre as crianças de rua. Quem faz isso por um longo tempo sofre extremas consequências na saúde, piores do que quem fuma maconha ou consome ecstasy de vez em quando. Esses são os adolescentes realmente destruídos, que já perderam a vida. Mas ninguém faz nada contra, e a cola também não é proibida. 

Com tantas dúvidas sobre a forma como a Justiça do país conduziu o caso, Widodo sai mais forte ou mais fraco nos ambientes doméstico e internacional?

No exterior ele ficou mais fraco. Mas esse presidente não dá grande valor a isso. Durante a campanha eleitoral, sua política externa era uma página em branco. Ele tenta consolidar sua base de poder no próprio país e espera obter sucesso com tais ações. Não ganhou as eleições com grande vantagem, não tem maioria no Parlamento e tenta, por isso, mostrar sua força para sobreviver no cargo. Nos últimos anos, a Indonésia tornou-se fortemente nacionalista, e ele representa um partido que alimenta esse nacionalismo. O primeiro-ministro da Austrália foi pouco diplomático e disse à Indonésia: ‘Nós, australianos, ajudamos muito vocês na região de Aceh na época do tsunami, então agora vocês não devem executar os nossos cidadãos’. Isso resultou numa campanha entre a população de Aceh para recolher moedas que saldassem a dívida. Cerca de € 2 mil foram entregues à embaixada da Austrália. Essa é a mentalidade. 

O que esperar para os próximos meses? Haverá novas execuções na Indonésia?

Pressuponho que Joko Widodo não queira lidar com os mesmos problemas nos próximos tempos e que não haja uma nova série de execuções prevista para breve.

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