Prefeito não é síndico

Ao se apresentar apenas como gestor, candidato deixa de discutir problemas políticos fundamentais das cidades

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Por Renato Lessa
Atualização:

Em muitas dimensões o País é exuberante e parece, mesmo, exceder-se a si mesmo. A imagem de um país excessivo acabou por se impor às tradicionais metafísicas nacionais derrotistas, e todos de algum modo estamos à vontade sob o mantra do "nunca antes". Com efeito, o dístico presidencial predileto impôs-se ao processo eleitoral em curso. Dados do início de setembro, por exemplo, sugeriam que o presidente Lula e sua legionária base partidária poderiam sentir-se vitoriosos em 20 das 26 capitais brasileiras. Mesmo naquelas poucas capitais nas quais uma sigla nominalmente de oposição está na dianteira fatos curiosos sobressaem: está aí o candidato tucano à prefeitura de Teresina - o campeão peessedebista do atual torneio de captura de sufrágios - a ser processado por seus opositores petistas pelo uso indevido da imagem do presidente. Enganam-se os que supõem tratar-se de uso ofensivo. Ao contrário, esquecido da hidrofobia de alguns dos próceres nacionais do seu partido nas memoráveis jornadas de 2005, o candidato local parece ter usado a imagem do ex-inimigo como aliado e apoiador. Outros ex-raivosos converteram-se à candura: elogiam o Bolsa-Família, prometem ampliá-lo e exibem declarações do presidente de que, em nome do bem comum, não discrimina siglas partidárias. Pelo visto, a oposição é uma faculdade sazonal. Há tempo para tudo. Uma coalizão exuberante, cuja base inclui cerca de 15 partidos, habilita-se a colher um resultado idêntico a seu atributo. A extensão da coalizão governamental, no entanto, não esgota o âmbito da exuberância. O volume das eleições de amanhã é impressionante. Por todo o País, cerca de 350 mil candidatos a vereador e pouco mais do que 15 mil a prefeito disputarão aquilo que os politólogos designam como as "preferências dos eleitores". O número de siglas partidárias beira três dezenas e é virtualmente incontável o número de combinações que praticam, por meio de diferentes coligações majoritárias (para prefeitos) e proporcionais (para vereadores). Se incluirmos no censo demográfico-eleitoral aqueles que são mobilizados para trabalhar no dia das eleições, em diversas atividades, o montante não é desprezível. Em levantamento que fiz em 2000, encontrei para o total dos 5.513 municípios brasileiros 2.843 zonas eleitorais, 88.821 locais de votação e 307.516 seções. É de imaginar que a coisa cresceu ainda mais. Ainda em um plano estritamente numérico, o eleitorado brasileiro vem crescendo de modo expressivo. Tínhamos cerca de 80 milhões de eleitores em 1989, hoje temos cerca de 130 milhões. Tal ritmo, no entanto não foi acompanhado por indicadores de escolaridade. A proporção de eleitores com nível superior completo mantém-se praticamente inalterada, em cerca de 3% do eleitorado, enquanto 55,8% do eleitorado - dados de 2008 - são compostos por analfabetos absolutos, analfabetos funcionais e pessoas com primeiro grau incompleto. O contingente de eleitores com primário completo e secundário incompleto adiciona ao grupo anterior cerca de 26% do eleitorado total. Uma inclinação pretensamente antielitista desconsidera tais marcadores, cuja evocação poderia estar a serviço de insidiosas tentativas de desqualificar votos e escolhas de cidadãos de baixa escolaridade. O fato é que a extensão da cidadania política esteve sempre dissociada do alcance e das políticas de escolarização. Em outros termos, trata-se da presença de ritmos diferenciados no acesso a direitos políticos - participação eleitoral - e a direitos sociais - educação, nesse caso. É escandalosa a presença no eleitorado do um contingente para o qual a experiência da escolaridade é nula (22%) ou quase isso (34%). Analistas do mercado de trabalho são unânimes em indicar as barreiras à entrada desse contingente na vida econômica formal e regular. Não me parece ser, em nome de um antielitismo inócuo, cabível desconsiderar os efeitos do problema sobre aquilo que os politólogos mais modernos do que eu denominam o "mercado político". Parte do discurso encantado com a grandiosidade da festa eleitoral brasileira incide sobre algo que seria digno de comemorar: o "eleitor médio" está se tornando mais "racional". Preocupa-se, sobretudo em eleições municipais, com propostas de natureza administrativa e menos com verborragia ideológica. Difícil mesmo é compatibilizar o que diz o "eleitor médio" nas pesquisas de opinião com o que efetivamente resulta de seu voto. A não ser que tomemos os eleitores como em permanente estado de natureza, uma visão minimamente adulta do mundo recomenda compreendê-los como sujeitos políticos criados pelo ambiente político circundante. Em tal ambiente, os partidos políticos reduzem-se cada vez mais a agentes de captura de sufrágio. Há quem diga, com argumentos respeitáveis, que os partidos manifestam alguma consistência no âmbito dos legislativos. Que seja. No plano eleitoral, duas dinâmicas se apresentam com força nesta eleição: a bestialização dos eleitores e a adesão maciça e disseminada a uma ideologia administrativista. A bestialização é evidente no tom irritantemente didático e de vocabulário parco dos programas eleitorais. A mistificação dos grupos focais e das pesquisas qualitativas faz com que o sucesso eleitoral dependa da capacidade de dizer exatamente o que se supõe que o "eleitor" pensa. Não há fertilização, mas reiteração plastificada das piores e mais unidimensionais versões do senso comum. O que daí resulta é um simulacro da política. A desqualificação escolar e a que incide sobre a cognição política dos eleitores são aliadas e resultam dessa política republicida de conduzir a competição eleitoral. Se somarmos a isso a cultura do administrativismo, a sensação de irrelevância da política se fortalece. Por toda parte, os prefeitos são apresentados como síndicos e gestores. Em virtualmente nenhum lugar problemas políticos fundamentais das cidades foram tratados de modo sistemático e como marcadores de posições políticas distintas que justificam a disputa eleitoral. A ênfase na administração traz consigo o perverso elogio da continuidade e da necessária cooperação entre município, Estado e União. O reconhecimento dessa fatalidade, para uns, é sinal de racionalidade. Pode ser que sim, mas nesse caso devemos convocar uma idéia de razão como faculdade de adaptação à chantagem. E para isso, não carece ter pensamento. *Renato Lessa é professor de Filosofia Política do Iuperj e da UFF e presidente do Instituto Ciência Hoje

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