Presidencialismo de transação

Chefe do Executivo distribui benesses, mas fica refém do Congresso. É como se o voto do eleitor fosse seqüestrado

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Por Marco Antonio Villa
Atualização:

No Brasil temos um presidencialismo de novo tipo, um presidencialismo de transação. Transações caras, à custa do tesouro público. A desfaçatez é tão grande que tudo é feito às claras. Se antigamente a negociação para obter apoio político era realizada clandestinamente, hoje a transação é pública. Um político reivindica um cargo e usa a imprensa como instrumento de pressão, de coação sobre o governo. Na esfera federal (pois o mesmo se reproduz nos Estados e nos municípios) já virou rotina um deputado ou senador exigir uma diretoria de estatal ou um ministério como contrapartida para apoiar o governo. Exemplos não faltam, infelizmente. Não faz muito tempo, foi amplamente noticiada a exigência do PMDB carioca para que fosse nomeado o ex-prefeito Luiz Paulo Conde para a diretoria de Furnas. Estranhamente, ninguém perguntou aos próceres do partido as razões desse empenho. Será que o PMDB carioca tinha um projeto elétrico e necessitava da diretoria da estatal para implementá-lo? Realizou seminários sobre o tema e incluiu no programa regional do partido um capítulo sobre a importância de Furnas para o desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro? O indicado era uma autoridade sobre o tema, uma espécie de Thomas Edison carioca? Nada disso, o PMDB carioca queria porque queria a diretoria da estatal para fazer "aqueles negócios" que todos nós conhecemos. O terrível é que nenhuma autoridade judicial, o Ministério Público, ou lá o que seja, interpelou o partido. Tudo foi aceito como absolutamente natural, a seção estadual "ganhou" a diretoria de Furnas e Conde foi nomeado. Severino Cavalcanti ficou celebrizado pelo desejo de controlar uma diretoria da Petrobrás que "furasse poço", como declarou. Mas teve pouca sorte, pois, como é sabido, foi obrigado a renunciar à presidência da Câmara dos Deputados e depois não se reelegeu (atualmente é candidato a prefeito de João Alfredo, sertão pernambucano, com apoio do PT local). Mas outros caciques da política regional (e que têm uma ação muito mais nefasta que Cavalcanti) continuam vendendo apoio ao governo federal. Basta consultar as agências federais que atuam no Norte e Nordeste, somente à guisa de exemplo, e encontraremos vários delegados desses oligarcas que dirigem empresas, bancos e superintendências unicamente para auferir benefícios financeiros que são repassados ao "padrinho" e distribuídos entre os membros da famiglia. Esses mandões locais só sobrevivem porque contam com a complacência e conivência do poder central, do presidente da República. O exemplo que vem de Brasília acaba contaminando Estados e municípios. As alianças políticas também são estabelecidas por essa lógica perversa, que antecede até a vitória eleitoral. A imprensa noticiou fartamente os acordos para a eleição municipal deste ano e o centro da discussão foi o tempo na televisão. Não houve um partido que ao estabelecer uma aliança tenha discutido alguma questão programática. Nada disso. Os partidos, que têm proprietários, especialmente os menores, comercializaram o tempo de televisão, trocando por eventuais favores após a vitória e por apoio financeiro aos seus candidatos (os famosos gastos não contabilizados) Entra governo, sai governo, e nada muda nesse presidencialismo de transação. O primeiro mandatário é refém do Congresso Nacional, como se o voto do eleitor fosse seqüestrado e o preço pelo exercício da função presidencial dependesse do pagamento de uma espécie de resgate. As alianças políticas não são estabelecidas com base programática. A maior parte dos parlamentares nem sequer tem conhecimento de itens básicos do programa do seu partido. Alguns têm até dificuldade de dizer qual é seu partido, pois mudam de um para outro em questão de meses (teve um caso célebre em 2005, pouco antes do término do prazo legal para mudança de legenda, quando o deputado saiu de um, entrou em outro e no dia seguinte mudou outra vez de partido). A permanência dessa relação de coação do Legislativo sobre o Executivo é apresentada como inevitável, uma condição indispensável para a governabilidade. Ganha até foro acadêmico e recebe o nome de presidencialismo de coalizão. Qualquer crítica a essa coação é vista como uma espécie de rompimento da ordem democrática, pois levaria ao estabelecimento de uma outra relação, baseada em princípios programáticos, que para ser estabelecida levaria necessariamente a um choque (ao menos inicialmente) com o Legislativo. Ninguém imagina que o baixo clero, acostumado há décadas com o sistema do "é dando que se recebe", aceitará sem resistir um outro tipo de arranjo político. Será inevitável um enfrentamento que, se bem conduzido, poderá levar o País a um outro patamar e finalmente à democracia. Seria uma verdadeira revolução nos marcos democráticos se um presidente, antes de assumir, convocasse uma rede nacional de rádio e televisão e apresentasse seu programa de governo e eventuais projetos de lei que encaminharia ao Congresso Nacional para dar sustentação a sua ação administrativa. Ou seja, a aliança de sustentação no Parlamento teria como balizamento o programa de governo. Portanto, em vez de um saque organizado do erário público, como ocorre nos tempos atuais, teríamos o estabelecimento efetivo de um governo de coalização, mais amplo ou menos amplo, dependendo da representação parlamentar. Poderíamos ter, pela primeira vez na nossa história, um debate parlamentar e público sobre alianças com bases em programas, como ocorre nas mais antigas democracias ocidentais. Para que tal aconteça, o ponto de partida é a ação do presidente da República. É ele que deve dar o pontapé inicial. Deve ter a ousadia de romper com uma prática nociva ao sistema democrático. Não criará nenhuma turbulência política. Pelo contrário. Ninguém, em sã consciência, considera que vivemos em um regime de normalidade constitucional, isso quando a cada semana temos denúncias gravíssimas sobre desvios de recursos públicos. A pergunta que fica é: quando será efetivamente proclamada a República que foi anunciada em 15 de novembro de 1889? *Marco Antonio Villa é historiador e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); autor, entre outros livros, de Jango, um Perfil QUARTA, 2 DE JULHO Lula critica ?torcida contra? O presidente Lula diz em Curitiba que uma minoria torce para a inflação só para poder falar mal do governo. Lula falou durante o lançamento do Plano Agrícola e Pecuário. "Quem torcer para este país não dar certo vai quebrar a cara", alertou o presidente.

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