Primeiro Nobel russo, Ivan Bunin tem contos reunidos no Brasil

Aristocrata, o escritor ganhou o prêmio em 1933 e foi desafeto de Maiakovski

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Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualização:

Primeiro russo a receber o Nobel de Literatura, em 1933, o aristocrata Ivan Bunin (1870-1953), proveniente de uma família da nobreza rural, compôs sua obra sobre uma “sensação de perda irreversível”. Esta é a análise da tradutora Márcia Pileggi Vinha, que escreveu o prefácio Uma Vida Sitiada, Mas Não Sem Amor para a edição dos Contos Escolhidos (Editora Amarilys). Segundo Vinha, “da infância e juventude, Bunin reteve a impressão de que o modo de vida e os costumes que caracterizavam, por gerações, sua família e sua região, Oriol, na Rússia Central, estavam minguando, fadados a desaparecer”. 

O escritor russo Ivan Bunin, Nobel de Literatura em 1933 Foto: MAKSIM PETROVICH DMITRIEV

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É assim que a nostalgia bucólica e a ode panteísta à natureza em meio à Rússia rural dão o tom lírico para as descrições que, ao invés de constituírem meras interpolações para dar liga ao encadeamento narrativo, se erigem como a ontologia tangível da memória e da saudade. Como se estivesse caçando as borboletas multicoloridas de um tempo dolorosamente próximo e distante, um tempo irremediavelmente perdido, o narrador de Bunin sente “um cheiro de cozinha, de frescor que antecede a primavera. Por vezes, parecia que a primavera venceria por completo o inverno. Já pela manhã, o sol esquentava, gotas caíam, o céu azul se irradiava, e a neve irradiava seu reflexo. Mas, depois do meio-dia, o tempo se encobria, a umidade penetrava, mais uma vez baixava a névoa, e o jardim baço azulava-se e enregelava-se em sua sonolência. A primavera de súbito retornava. O gelo dos telhados dos galpões se derreteu em um dia, a palha velha e parda que guardavam se dourava ao sol, a alma azul e enternecedora do céu se sobressaía intensamente. Soltaram os potros e as vacas, cuja pelagem se adensara no inverno. Eles cochilavam e aqueciam-se ao sol, que, num tom de framboesa, sem raios, se sentou qual enorme globo na cerração turva e acinzentada detrás do rio, por detrás dos campos.”

A beleza poética do memorialismo de Bunin desvela por que o autor era considerado um verdadeiro estilista da língua russa, cuja literatura fundia, de maneira inconsútil, prosa e poesia. Segundo Márcia Pileggi Vinha, Bunin estava sempre “atento ao ritmo, à sonoridade e à fluência do texto. Para ele, escrever prosa era como prolongar versos.” O aristocratismo literário, social e político de Ivan Bunin fez com que o autor não só se apartasse, mas também se tornasse um crítico acerbo de dois grandes movimentos umbilicalmente irmanados que irrompiam com vigor no início do século passado: o vanguardismo artístico, munido de suas múltiplas experimentações, e a vaga revolucionária que levaria à derrubada da monarquia czarista, em fevereiro de 1917, e à ascensão dos bolcheviques ao poder, em outubro daquele ano emblemático tanto para a história da Rússia quanto para o devir do século 20.

Bunin era um opositor encarniçado da poesia e das ideias políticas – a bem dizer, da poesia política – do revolucionário Vladimir Maiakovski (1893-1930), a quem considerava uma aberração como pessoa e como poeta. Márcia Pileggi Vinha nos conta que, “certa vez, Maiakovski teria perguntado a Bunin: ‘Você me odeia, não?’, ao que ele teria respondido: ‘Não. Isso o honraria em demasia.’”  A divisão dos Contos Escolhidos segue a cronologia histórica que fraturou a vida, a obra e a época de Bunin: os contos de 1891 a 1917 vão da obsolescência da Rússia profundamente rural, ortodoxa e czarista ao ano de irrupção das revoluções; os contos de 1917 a 1933 acompanham a eclosão da sangrenta e longeva guerra civil que se seguiu à Revolução de Outubro até o ano em que o escritor, exilado na França, é laureado com o Nobel; por fim, os contos de 1933 a 1950 são concomitantes ao paradoxo da consagração acompanhada da decrepitude financeira e física de Bunin, que viria a falecer em 1953, poucos meses após a morte do ditador/carrasco soviético Josef Stalin. 

Em meio à guerra civil que contrapôs os russos vermelhos, partidários dos bolcheviques, aos russos brancos, que se compunham de uma amálgama complexo de defensores tanto do czarismo quanto do governo republicano-constitucional que depusera a monarquia em fevereiro de 1917, Bunin assistiu ao confisco da propriedade de sua família e quase foi assassinado por camponeses revoltosos. À época, o autor chegou a proclamar, de forma profética: “E as relações humanas? Como construir uma sociedade justa a partir das trevas da violência? Está fadada ao fracasso.” Não à toa, o conto Fim desponta como uma lápide para a Rússia imemorial de Bunin que se viu irremediavelmente perdida e cindida pela revolução e pela guerra fratricidas. *É DOUTOR EM LETRAS PELA FFLCH-USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNIVERSITY (EUA). AUTOR DE ‘O EVANGELHO SEGUNDO TALIÃO’ (NVERSOS), TIRO DE MISERICÓRDIA’ (NVERSOS) E ‘DOSTOIÉVSKI E A DIALÉTICA: FETICHISMO DA FORMA, UTOPIA COMO CONTEÚDO’ (HEDRA)

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