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Foragido até hoje, dr. Abdelmassih foi cassado por falta de ética antes dos crimes de assédio

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Por José Marques Filho
Atualização:
GV0G6037 SÃO PAULO /SP 24/12/2009 METROPOLE MEDICO /HABEAS CORPUS - O médico Roger Abdelmassih deixou o 40º Distrito Policial, na Vila Santa Maria, zona norte de São Paulo, por volta das 12h45 desta quinta-feira, 24. Abdelmassih estava preso desde o último dia 17 de agosto sob a acusação de ter praticado 56 crimes sexuais contra ex-pacientes FOTO FELIPE RAU/AE Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO

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Parece que tudo ficou resolvido. Quase não se fala mais no assunto. A impressão que fica para a comunidade médica brasileira - e possivelmente para parte da população - é que o sumiço do “rei da reprodução assistida” é conveniente para muitos. Enfim, por onde anda o famoso médico Roger Abdelmassih? Oficialmente, ninguém sabe. Cassado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) em agosto de 2010, condenado na Justiça a 271 anos de prisão e foragido desde janeiro de 2011, Abdelmassih talvez esteja desfrutando, em algum destino terrestre (Líbano, talvez?), da enorme fortuna que amealhou durante sua vida profissional. Em 2009, quando apareceram contra ele as primeiras manchetes com denúncias de mulheres, quase ninguém acreditou. Após as primeiras vieram muitas outras, todas recebidas pelo Cremesp, com abertura de sindicância e devido processo ético-profissional (51 processos). O plenário do Cremesp votou por unanimidade dos conselheiros presentes a suspensão cautelar do exercício profissional do dr. Roger, visando a proteger outros pacientes e a sociedade em geral. As denúncias foram feitas por mulheres desconhecidas do público, sem conhecimento entre si, o que lhes deu mais credibilidade. Nenhuma celebridade, entre amigos e pacientes que o médico usava para se autopromover, se manifestou. Nem para acusá-lo, menos ainda para defendê-lo de tão graves acusações. Poucos sabem, mas o primeiro processo julgado pelo Cremesp resultando na cassação do exercício profissional do dr. Roger não foi por crime de assédio contra suas pacientes, mas por procedimentos não éticos, de extrema gravidade, praticados em sua clínica por mais de 20 anos. Óvulos de “doadoras” eram usados sem avisar a mulher ou o casal. Às vezes, nem o esperma era do marido. As notícias sobre esses procedimentos realizados pelo médico para obter alto índice de sucesso com sua técnica certamente causaram sofrimento e ansiedade a muitos casais, podendo trazer sérios problemas em futuras gerações quanto à questão da paternidade. Mais grave ainda foi a situação vivida pelas mulheres assediadas (algumas estupradas), que, diante da imensa vulnerabilidade na esperança de serem mães, entregaram todos os seus sonhos (e por vezes suas economias). Ao mesmo tempo, o prejuízo que o comportamento do médico trouxe ao prestígio da classe médica é impossível de avaliar. A ética é, sem dúvida, o maior patrimônio daqueles que exercem essa profissão. A confiança no profissional é fundamental para a obtenção do melhor resultado possível para o paciente. E, lamentavelmente, essa confiança nos médicos que exercem dignamente sua atividade no País fica abalada quando práticas como as do dr. Roger são publicadas, provadas e condenadas ética e judicialmente. Entretanto, a divulgação dessas práticas resultou em importantes avanços na área de reprodução assistida. Novas resoluções oficiais do Conselho Federal de Medicina, normatizando as fiscalizações das clínicas de reprodução assistida e os procedimentos técnicos realizados pelos especialistas da área, foram publicadas, melhorando sua qualidade ética e técnica. A cassação do exercício profissional de médico é uma das atividades mais difíceis e dolorosas dos conselhos de medicina. O Conselho Federal de Medicina e os Conselhos Regionais de Medicina foram criados por Lei Federal de 1957, assinada pelo presidente Juscelino Kubitschek. São autarquias federais mantidas somente com a contribuição anual obrigatória dos médicos, sem nenhuma subvenção do Estado ou das entidades médicas, o que lhes confere autonomia e imparcialidade. Esse sistema de fiscalização do exercício profissional médico é único no mundo. Nos EUA, por exemplo, os julgamentos são feitos pela Justiça comum. No estudo que realizei sobre a cassação do exercício da medicina, que resultou em tese de doutorado, demonstrei que de 1988 a 2004 foram condenados à cassação 45 profissionais, todos homens. As três primeiras causas foram aborto criminoso com graves lesões às pacientes, fraude e charlatanismo. Cassação por assédio sexual, apenas em duas ocasiões. O estudo demonstrou também que os médicos são mais frequentemente condenados por atos caracterizados como eticamente inadequados que por falhas técnicas. Os dados evidenciam a sabedoria do maior dos doutores, Hipócrates, quando ensinava um de seus aforismos mais importantes: Primun non nocere. Primeiro, não prejudique.

*José Marques Filho é reumatologista e doutor em Bioética. Foi conselheiro do CREMESP de 1993 a 2013

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