Projeto de Trump quer abolir arquitetura moderna em prédios públicos

Projeto estabeleceria o uso de estilos arquitetônicos tradicionais ou clássicos para quase todas as reformas e construções de novos prédios federais

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Por Michael Kimmelman
Atualização:

Outro dia, estava passando pelo Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana do Smithsonian, em Washington, quando o sol de inverno fez brilhar sua fachada de alumínio acobreado. O prédio parecia aquecer parte daquela paisagem toda congelada do National Mall, diante da falange fria de gigantes de pedra cinza, quase todos de desenho clássico.

O Museu Nacional da História Afro-Americana, em Washington, é um dos edifícios públicos da nova leva Foto: Lexey Swall/The New York Times

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Em termos de estilo, não sei como denominar a arquitetura do museu. O arquiteto ganês-britânico David Adjaye liderou a equipe responsável pelo projeto. A construção tem algo de clássico, com base e capitel; ao mesmo tempo, os padrões da fachada se inspiram nos trabalhos em ferro dos escravos do sul e a estrutura de três camadas inclinadas deriva das tradições esculturais da África Ocidental.

O projeto é uma espécie de meditação sobre os significados simbólicos do classicismo americano e sobre a maneira como o estilo funciona enquanto símbolo de orgulho, ou enquanto ferramenta da opressão e do colonialismo – dos quais o modernismo, com seu vidro transparente e inovação técnica, prometia escapar e se libertar. Em termos arquitetônicos, o museu é muitas coisas, isto para não mencionar o fato de que está sempre cercado de gente – sem dúvida o edifício público mais popular e bem-sucedido de Washington neste século.

O governo Trump está planejando uma ordem executiva, o “Make Federal Buildings Beautiful Again” [algo como “Deixar os Prédios Federais Bonitos de Novo”, inspirado no Make America Great Again], que estabeleceria o uso de estilos arquitetônicos tradicionais ou clássicos para quase todas as reformas e construções de novos prédios federais. (O Smithsonian, por acaso, ficaria livre desse direcionamento, mas eu o mencionei para ilustrar o tipo de ideias que a ordem executiva subverteria.) Qualquer projeto que queira isenção do ordenamento terá de obter a aprovação de um comitê presidencial de “re-embelezamento”. A ordem executiva visaria a várias formas de modernismo e tentará desfazer o admirado Programa de Excelência em Design da Administração de Serviços Gerais, um sistema de revisão por pares que seleciona arquitetos qualificados para projetos federais. O diretor do programa, David Insinga, renunciou na semana passada, de acordo com a revista Architectural Record, que deu a notícia sobre o ordenamento.

As notícias provocaram fortes protestos entre os arquitetos, mas também entre preservacionistas históricos e defensores da arquitetura tradicional. Isso porque a ordem executiva parece concebida para provocar tanto apoiadores da arquitetura moderna e quanto da diversidade arquitetônica. É um objeto hipnotizante, isca de Twitter. Os populistas versus as elites. A indignação arrebata a base de Donald Trump. É uma vitória para ele. Provavelmente não será uma vitória para os proponentes da ordem executiva, como a National Civic Art Society [Sociedade Nacional de Arte Cívica], que liderou a iniciativa. Conversei com organizações que apoiam a arquitetura clássica, mas querem distância da proposta, das políticas envolvidas e da Sociedade de Arte Cívica. O National Trust for Historic Preservation [Fundo Nacional para Preservação do Patrimônio Histórico] emitiu uma nota em apoio aos atuais padrões federais: “O ordenamento colocaria em risco edifícios federais de todo o país, os quais representam toda a nossa história”. E acrescentando: “Nós nos opomos frontalmente a qualquer esforço para impor um conjunto restrito de estilos para futuros projetos federais, com base no gosto arquitetônico de alguns indivíduos”. Ninguém sabe o que o classicismo significa, em última análise. Mas o projeto de ordem executiva faz com que pareça terrivelmente arrogante e mesquinho. Não importa que seus partidários digam que a aplicação não seria dogmática: o ordenamento suscita inevitáveis alusões a regimes autoritários que no passado impuseram suas próprias ordens arquitetônicas e desenterra imagens do Estados Unidos pré-guerra, quando a arquitetura clássica federal estava na moda. Associações como estas podem parecer exageradas. Mas a ordem executiva também é.

O simples fato de estarmos discutindo esse tema já é degradante, assim como muitas outras coisas do debate público dos Estados Unidos dos dias de hoje. Precisamos dizer que os Estados Unidos há muito tempo exercem seu soft power construindo embaixadas e outros edifícios cuja inconformidade arquitetônica transmite uma conveniente mensagem de otimismo, inovação e liberdade? “Nossa capacidade de competir efetivamente nos mercados internacionais depende, em grande medida, de um elemento muitas vezes esquecido, mas fundamental: a qualidade do nosso design”. Foi isto que o presidente Ronald Reagan disse em 1987, quando anunciou uma segunda rodada de prêmios federais por excelência em design, iniciativa precursora do Programa de Excelência em Design que o ordenamento proposto quer extinguir.

E seria necessário apontar por que alguém defende o direito estatal de atacar a arquitetura específica dos diversos locais, estilisticamente concebida para se adequar às diversas culturas americanas, e apoia a obediência a uma ordem de Washington? Ou explicar por que as divergências sobre o estilo arquitetônico têm a ver com uma sociedade saudável e democrática em ação? Afinal, não existe um estilo único de arquitetura que represente a nação – ou que não provoque, nem deva provocar, debate.

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A ordem executiva toma de empréstimo a linguagem dos “Princípios Orientadores para a Arquitetura Federal”, que Daniel Patrick Moynihan escreveu em 1962, quando o futuro senador ainda estava no Departamento de Trabalho de Kennedy. Moynihan acreditava que a arquitetura federal deveria “dar testemunho visual da dignidade, engenhosidade, vigor e estabilidade do governo americano”. A nova proposta também fala de dignidade, engenhosidade, vigor e estabilidade.

Mas desfaz os princípios-chave dos quais, como Moynihan deixou claro, dependem esses objetivos: o design deve “fluir da profissão de arquiteto para o governo, e não vice-versa”, porque a especialização é importante e “deve-se evitar um estilo oficial”.

No clima político atual, pode parecer inútil abordar a questão da hipocrisia, então vamos deixar de lado as modernas torres de vidro de Trump. O projeto de ordem executiva elogia o prédio de Washington agora conhecido como Eisenhower Executive Office, dizendo que é “belo e amado”. Harry Truman o chamou de “a maior monstruosidade da América”. Basta dizer que mudanças de gosto e estilo são, por definição, o critério mais superficial para avaliar a arquitetura.

Os edifícios, assim como as pessoas, merecem ser considerados e julgados individualmente. O contexto é importante. Às vezes vem um fracasso, como acontece com qualquer coisa significativa na vida. O acréscimo de colunas coríntias ou janelas palladianas a um tribunal federal ou embaixada não garante nada acerca da funcionalidade do edifício para as pessoas que o usam, nem dá testemunho de dignidade, engenhosidade, e vigor do governo dos Estados Unidos. Não vou começar a listar todos os edifícios tradicionais do país que considero lindos e inspiradores. Mas, para mim, colunas gregas e janelas italianas não fazem um edifício parecer mais americano.

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A armadilha é cair em um debate sobre gosto ou estilo. Seria o tipo de polêmica cultural que o presidente adora cultivar e explorar. Assim como a maioria das pessoas, posso fazer uma lista de edifícios modernos de que não gosto. Mas, se eu dissesse que admiro o Chicago Federal Center de Mies van der Rohe, ou o Palácio de Justiça de Thomas Phifer, em Salt Lake City, ou o Oklahoma City Federal Building de Ross Barney, estaria apenas dando munição para os inimigos do Twitter e para os defensores do “Deixar os Prédios Federais Bonitos de Novo”, que basicamente estão argumentando que a arquitetura federal, como o Colégio Eleitoral, na verdade não precisa representar todas as pessoas, mas apenas algumas pessoas.

No final, somos o que construímos. Caso ninguém tenha notado, a infraestrutura do país está em ruínas, há uma ampla escassez de moradias acessíveis e o governo federal continua desperdiçando anos sem fazer nada.

Isso parece um indicador tão preciso do estado da união quanto o número de colunas na fachada de um tribunal. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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