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Quando a Justiça está aquém da circunstância

Nosso familismo hipócrita e a incompetente tutela do Estado maculam os 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente

Por José de Souza Martins
Atualização:

Um juiz de Fernandópolis (SP), apoiado no Estatuto da Criança e do Adolescente, multou em três salários mínimos a mãe pobre e sozinha de um jovem de 17 anos pelas faltas do filho na escola, num quadro grave de rendimento escolar baixo, comportamento desrespeitoso, reincidência na condução de moto sem habilitação. No dia 17, em Boituva (SP), a mãe de um jovem de 20 anos conseguiu, por meio de insistentes cartas ao Superior Tribunal de Justiça, um habeas-corpus para o filho, viciado em drogas, que ficou preso durante quatro meses, acusado por outro viciado de ter se apropriado de R$ 10 - habeas-corpus que fora negado pela Justiça local e pelo Tribunal de Justiça. Justiça formalista e cara. No mesmo mês em que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, chega aos 18 anos, essas notícias desalentadoras sugerem quanto carecemos de uma corajosa postura crítica em relação a rígidas concepções da lei, e dessa lei em particular, interpretada por muitos à Pôncio Pilatos. Como se a interpretação das leis relativas às questões sociais não devesse interagir com a circunstância das ocorrências e a complexa teia de fatores de problemas, o que inclui as próprias instituições. O estatuto ainda surpreende porque começa, no fim das contas, reconhecendo que criança também é gente, o que se supunha fossem favas contadas na nossa religiosidade e na nossa moral familistas. A lei foi, em boa parte, resposta à proliferação de indicações de exploração, violência e abuso, além do abandono, contra crianças, no interior da própria família e fora dela. A lei e sua aplicação foram mostrando quanto havia e há de hipocrisia nesse familismo. A crise da família tem raízes históricas e é nelas que devemos buscar os fatores primários de uma transformação social que penaliza em primeiro lugar os imaturos, mas penaliza, também, a mulher. Se tínhamos ordem no escravismo, a nova sociedade de pessoas teoricamente livres só aos poucos encontrou seu eixo ordenador e se firmou na liberdade em boa parte fictícia que acobertou relações de dependência pessoal, centradas na família e no lugar subalterno da mulher. A mãe de família tornou-se a figura mítica da sociedade, exaltada nas políticas oficiais e nas celebrações cívicas. Pouco se falou de sua servidão disfarçada nas prendas domésticas. Durante as sete primeiras décadas republicanas, a "mãe de família" assegurou a procriação extensa de filhos que o mercado de trabalho reclamava, num país que "importava gente" para suprir as carências da lavoura e da indústria. Assegurou, também, a educação das novas gerações no recinto da autoridade materna, que com amor temperava as durezas da cultura patriarcal remanescente na figura do pai. Afago e relho se combinavam para indicar às crianças e aos jovens quem mandava e quem obedecia. Essa era começou a declinar na segunda metade dos anos 60. De um lado, porque diminuiu o tamanho da família. O devotamento da mulher exclusivamente ao lar e à criação dos filhos foi relativizado. Muitas trabalhadoras, nos anos 40 e 50, planejavam a vida reprodutiva e as responsabilidades maternas com o intervalo de uma década, após o casamento, no trabalho fora de casa, norma que substituíra o padrão do trabalho externo da moça só até o casamento. De outro lado, porque o chamado arrocho salarial, dos anos 60, rapidamente obrigou um número maior e crescente de mulheres a entrar no mercado de trabalho para completar os meios da família. Foi um ganho para a mulher, sem dúvida, que por meio do trabalho fora de casa passasse a ser assimilada por relações contratuais de trabalho, opostas à da exploração doméstica. Mas nem por isso foi liberada das obrigações da casa, condenada à dupla jornada de trabalho. Diferente do que aconteceu em outros países, em que equipamentos que modernizaram o trabalho doméstico e uma rede de serviços substitutivos desse trabalho, inclusive na educação dos filhos, asseguraram à mulher a independência que as mudanças econômicas e sociais possibilitavam e até impunham. Aqui, se houve algum progresso técnico na cozinha e na lavanderia para uma parte das famílias, foi pobre e precário o avanço dos serviços de lavanderia, creche, escola. Embora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação tenha estabelecido a obrigatoriedade da escola em tempo integral, com prazo certo para implantação, até agora isso não aconteceu. O que teria sido uma providência de emancipação da mulher e de substancial melhora e modernização da educação. Sobretudo, salvaria milhares de imaturos do abandono, que só se dá a ver em casos excepcionais. A escola em tempo integral, na perspectiva humanista da escola imaginada por Anísio Teixeira e por Darcy Ribeiro, teria suprido as carências e a decorrente violência que tornaram necessário o ECA para nos imaturos reconhecer direitos de adultos, quando teria sido preferível um estatuto realista que lhes assegurasse o direito à infância e o direito à juventude. Punir a mãe de Fernandópolis, mãe sozinha, pobre, abatida e impotente em face da insubordinação de um moleque de 17 de anos, para por esse meio atingi-lo e educá-lo, é expediente frágil e, provavelmente, inócuo. O caso mostra claramente como o ECA foi concebido em nome de uma sociedade restrita, a dos imunes às crises da sociedade e da família. Estabelece como meio para solucionar casos como o de Fernandópolis forçar a ficção da família típico-ideal onde ela não existe e em quem está dela privado. O insubmisso de Fernandópolis o é não por falta de mãe, mas por falta de pai. Na mãe, a Justiça puniu o pai. A ausência desse pai, é o que dá a entender o estatuto, deveria ter sido suprida pela própria tutela do Estado, acolitando a mãe e suprindo-a com meios e instrumentos substitutivos do pai ausente. Foi ela, portanto, punida duas vezes: na privação da justiça de que careceu na educação do filho; na injustiça de que não precisava, decorrente da auto-indulgência das instituições incumbidas de assegurar ao adolescente o que não teve. *José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A sociabilidade do homem simples (Contexto)

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