Que legado?

No pós-Copa, torcedor merecia mais que a imagem de estádios vazios e de vândalos escoltados pela PM

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Por Mauricio Murad
Atualização:
SP - FUTEBOL/BRASILEIRÃO/CORINTHIANS/PALMEIRAS - ESPORTES 27-07-2014 Foto: Rafael Arbex/Estadão

Um megaevento esportivo tem três grandes momentos integrados: o antes, o durante e o depois. O antes da Copa de 2014 foi preocupante, o durante correu bem e o depois está porvir. Que tal agora que o Mundial acabou pensarmos no legado prometido? Autoridades disseram, em 2007, quando ganhamos sediar o evento, que a mobilidade urbana seria a principal herança para as cidades brasileiras - e hoje é a imobilidade urbana sua mais completa tradução. E que dizer quando se trata de segurança em todos os níveis: no trânsito, na escola, no hospital, na família, nas ruas, nos estádios? 

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Não foi bom poder assistir ao futebol em paz, durante um mês, com policiamento inteligente, integrado e ostensivo, com prevenção e controle, sem excessos e truculências? Conviver com torcidas em clima de paz, sem violência e selvageria? Claro, claro, Copa do Mundo é diferente e não dá pra comparar. Mas, exatamente por isso, porque agora retornam as históricas e agudas rivalidades regionais, a descontinuidade das ações das forças de segurança, o que evidencia o despreparo, a baixa aplicação da lei e a impunidade, é que temos de nos preocupar e exigir das autoridades, pela enésima vez, um plano estratégico nacional de segurança para o futebol brasileiro, com três conjuntos de medidas concomitantes: punição no curto prazo, prevenção no médio e reeducação no horizonte mais longo. Não é favor, é o cumprimento de uma obrigação constitucional.

As pesquisas indicam que entre as principais causas do esvaziamento dos nossos estádios - horário dos jogos, televisão, transporte, preços -, destaca-se a violência entre torcidas organizadas (23 homicídios em 2012 e 30 em 2013, aumento de 30%), triste bicampeonato de mortes no primeiro mundo do futebol. O Brasil é o 35º país no ranking da média de público, com milhões de ingressos não vendidos e muitos milhões de prejuízo. Mas as pesquisas mostram também que os agressores e transgressores são minoria - perigosa, sim, mas minoria, e que as práticas de violência no e não do futebol não são exclusivas desse expressivo evento de nossa cultura coletiva, simbologia brasileira, identidade histórica, mas estão entranhadas no cotidiano de nosso contexto social. 

Então, que tal agora, nessa ressaca pós-Copa e reinício dos campeonatos, em que tanto se fala em passar nosso futebol a limpo, o Brasil assumir de vez uma política de segurança coletiva para o futebol, dentro e fora dos campos, que vá além dos governos, uma questão de Estado, permanente e renovável, de acordo com as novas realidades? Que se busque o controle e a paz entre as torcidas, construindo parcerias e privilegiando a proteção dos segmentos pacíficos, que são a maioria, além de campanhas com jogadores e preços promocionais, envolvendo os clubes, para trazer as famílias de volta aos estádios. E uma rede efetiva de integração entre as polícias, com capacidade operacional ostensiva, mas fundamentada na ação de inteligência dos órgãos de segurança, no cumprimento das leis, na prevenção dos delitos e na redução da impunidade. 

Basta! Não se pode mais ver com naturalidade a força pública, devido à incapacidade do sistema de transporte coletivo, dando proteção a vândalos mascarados que provocam outros vândalos e deixando a maioria dos torcedores entregue à própria sorte. Uma política de segurança para o futebol deve buscar parcerias com os segmentos pacíficos, para isolar os vândalos. Em tempos de arenas padrão Fifa, sem fossos e divisórias, urge eficiência e policiamento mais preparado, para preservar o torcedor, o cidadão, o espetáculo, o nosso futebol enquanto patrimônio cultural. As imagens da torcida do Palmeiras escoltada pela PM de São Paulo não deixam dúvida: há muita coisa a fazer, muito a mudar.

E, pela enésima vez, também é hora de sublinhar algumas medidas imediatas com lastro positivo em outros setores que podem e devem ser incorporadas à segurança do futebol, pois têm a vantagem adicional de integrar as três instâncias propostas - punição, prevenção e reeducação - devido a seu múltiplo alcance. Entre outras, o disque-denúncia das torcidas (como o disque 100 da pedofilia, agora ampliado), utilização do bafômetro (sucesso noutros países), interceptação telefônica (a lei permite, com autorização judicial) e ocupação das redes sociais (há delegacias especializadas em cibercrimes) e dos lugares dos conflitos (policiamento ostensivo).

Já que nosso futebol tenta “soluções” antigas dentro de campo e não só na seleção (a mídia noticiou: cinco gigantes do futebol brasileiro têm em 2014 os mesmos técnicos que tiveram em 1995), que tal se as “antigas torcidas” - sem nenhuma idealização, porque lá também havia brigas, embora nada igual às de hoje - pedissem e tivessem passagem em nome da isonomia, que está na moda, e voltassem com suas coreografias e alegorias, cânticos e brincadeiras? Como na Copa, em que, de um modo geral, adversário não é inimigo e muito menos inimigo a ser abatido.

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Maurício Murad, sociólogo da UERJ e professor titular do Mestrado da Universo, é autor, entre outros livros, de Para Entender a Violência No Futebol (Saraiva) e Todo Esse Lance Que Rola, Uma História De Namoro e Futebol (Oficina Raquel)

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