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Quem mandou pegar?

Nossa cultura arcaica de enfermidade vê o doente como causador da doença contagiosa

colunista convidado
Por José de Souza Martins
Atualização:

 Criança com doença de pele, não contagiosa, acompanhada da mãe, foi por uma companhia aérea impedida de embarcar em Brasília para Belém. A recusa, formalmente apoiada em leis e regulamentos, assustou a criança que acabou viajando de ônibus com a mãe, dois dias de uma viagem não recomendável pelos médicos. Mesmo que depois a companhia tenha se defendido com argumentos regulamentais e oferecimento de bondades, o dano ao menino já fora causado. 

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Entre nós predominam ainda pavores próprios da Idade Média, quando o Brasil nem existia, e aqui chegaram com o descobrimento e a colonização. O Acre, lugar de entrada de imigrantes africanos e haitianos, tem sido cenário de boatos que os estigmatizam porque supostos portadores do Ebola. Em muitos lugares, na África, os potencialmente infectáveis passam por dolorosas situações de confinamento e estigmatização. 

Conhecemos bem situações como essa aqui mesmo no Brasil. Nossos pavores tem uma matriz no modo pelo qual, por mais de 400 anos tratamos os hansenianos com repugnância e horror. A hanseníase disseminou aqui uma cultura em que se fundem concepções primitivas de doença e pecado, agravando o terror causado por enfermidades como essa, como a tuberculose e mais recentemente como aids. O arcaísmo essas concepções se manifesta não só na discriminação dos enfermos, mas até mesmo na violência que os alcança. 

Quando fazia pesquisa no Alto Paraíba, em São Paulo, nos anos sessenta, aproximou-se de mim certo dia um hanseniano horrivelmente mutilado. Conversamos bastante. Expulso de casa, ele havia pedido à polícia que o enviasse a um sanatório no Médio Paraíba, o que a polícia fez colocando-o no ônibus de carreira com um passe por ela fornecido. Mal o ônibus se afastou da pequena cidade foi ele atirado a pontapés para fora do veículo pelos próprios passageiros. 

A violência diminuiu unicamente porque a doença está sob controle e é tratável, embora as mutilações que causa permaneçam. Mas, a informação sobre cura se difunde muito mais lentamente do que a informação sobre doença. A hanseníase já tinha cura e o confinamento compulsório dos enfermos já havia sido abolido havia tempos em áreas sertanejas em que fiz pesquisa, nos anos 1970, no Mato Grosso, em Goiás, no Tocantins e no Maranhão. No entanto, a lepra ainda era enfrentada com um rito mágico. Em celebração comunitária, adultos ficavam de quatro, no chão, para compartilhar com os cães, comendo como eles e com eles, no mesmo prato, a melhor refeição que se pode oferecer a um convidado de honra. Trata-se de rito preventivo da lepra, o cão reconhecido como o único animal que não desamparou Lázaro, o bíblico hanseniano, não só lhe fazendo companhia, mas lambendo-lhe as feridas para aliviar-lhe o sofrimento. Igualar-se ao cão para credenciar-se na bênção da imunização.

Ocorrências preconceituosas, enraizadas na mesma cultura do pavor sanitário, ressuscitaram com o surgimento da aids. Mesmo em casos hilariantes. Em Sobradinho, perto de Brasília, uma ortopedista, cansada de ter a casa assaltada, colocou sobre a cerca de ferro seringas e agulhas e um cartaz anunciando que estavam contaminadas com vírus do HIV. Pode ter assustado os ladrões, mas acabou despertando a ira dos vizinhos. Quando da maior difusão de informações sobre aids e quando era maior o medo, bandidos usavam seringas e agulhas supostamente infectadas para ameaçar pessoas e assaltá-las. O medo tornava as vítimas cúmplices da violência.

Muita coisa se embaralha nesses casos que são, antes de tudo, “sintomas” de uma realidade social marcada profundamente por pavores ancestrais adormecidos no inconsciente coletivo à espera do despertador que os traga de volta. O boato, que os veicula, é um recurso igualmente arcaico de comunicação muito presente na sociedade brasileira. A internet, entre nós, acrescentou um poderoso instrumento moderno de difusão de concepções da cultura arcaica que podem ser danosas a pessoas e grupos. 

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É ainda recentíssimo o caso da mãe de família do Guarujá confundida com suposta raptora de crianças, vitimada por crendice divulgada pela internet. Foi brutalmente linchada e trucidada. Quando começou a divulgação de notícias sobre aids, e não faz muito tempo, muitos portadores da doença a escondiam, aumentando o risco à própria vida. Temiam, com razão, a cultura a que me refiro, dos diagnósticos populares sobre doenças contagiosas. Corriam risco, também, se outros viessem a saber que estavam infectados. Não só por temor à doença, mas por estigmatização dos homossexuais, supostamente difusores de costumes que a moral comum e a religiosidade preconceituosa condenam. Diferentes episódios de agressão foram registrados, até mesmo a tentativa de linchamento de uma jovem, por seus vizinhos, aqui em São Paulo, por ter corrido a notícia de que era portadora da doença. Nossa cultura arcaica das enfermidades pressupõe que é o doente o causador das doenças contagiosas. Logo, a “terapia” da repulsa e do banimento.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO,PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE UMA SOCIOLOGIA DA VIDA COTIDIANA 

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