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Quem pariu Demóstenes?

Senador cassado é produto de oposição performática e moralista que se manifesta não importando qual seja o governo, diz professor

Por Carlos Melo
Atualização:

Ao longo dos meses, a cassação de Demóstenes Torres tornou-se tão inevitável quanto natural. Até seu advogado preferiu, antes, contestar a legalidade das provas do que a veracidade dos fatos. As evidências do envolvimento do senador com o contraventor, aliadas ao revanchismo de desafetos, foram avassaladoras. Aos seus pedidos de perdão só restaram ser patéticos. Não saberia Demóstenes que não há maior prazer do que ver o feiticeiro morrer do próprio feitiço? Ou, como se diz, que "filho feio não tem pai"? Mas, à parte do evento, há a dinâmica do fato. Inicia-se na relação da sociedade com a política, seus efeitos na aproximação dessa com o crime organizado, e desemboca no papel que um personagem como Demóstenes assume no teatro político nacional, sua importância num deserto de liderança. Uma dinâmica que precisa ser compreendida. Em primeiro lugar, cabe avaliar a relação entre sociedade, política, crime e campanhas eleitorais. Não se sabe bem quem nasceu primeiro, se a desconfiança em relação à honestidade dos políticos, que fez com que a sociedade se afastasse da política, ou se o afastamento da sociedade, que fez com que proliferassem a esperteza e a desonestidade nesse meio. Nem todos os políticos são mal-intencionados ou corruptos. Mas a banda podre se expande quanto mais a sociedade crê na política como coisa de malandro. Penhorada, a malandragem cresce e explora a "reserva de mercado". Os mais sérios resistem por um tempo. Por fim, muitos desistem ou são afastados.Esse distanciamento nasce da visão de que "esse negócio de sociedade não existe, o que existe são os indivíduos e suas famílias". A frase é atribuída a Margareth Thatcher, mas a mentalidade a precede e, mais que isso, demonstra que o fenômeno é mais amplo que o Brasil. Trata-se de um modo de ver prejudicial a todos. Mesmo por uma questão de interesse pessoal, melhor seria aceitar que a sociedade existe, sim, e estamos todos sujeitos a ela. A forma de negociar as condições dessa convivência inevitável é, ainda, por meio da política. O contrário disso não implica condenar o egoísmo - um mal menor, além de uma consideração moral sem muita importância no processo -, mas sobretudo o alheamento, a omissão, a ausência de fiscalização e, portanto, a permissividade. Remetem-se os problemas a uma abstração: a qualidade das instituições. Instituições, no entanto, são composições muito concretas, não brotam do chão ou caem das nuvens. Resultam da interação social. Licenciosas ou eficientes, serão reflexo da sociedade.O caldo de cultura para a aproximação entre interesses privados, escusos e aqueles que restaram na condução da política está dado: o desinteresse permite ilícitos, fraudes, esquemas e, por fim, a banalização de escândalos. Junte-se a isso os exorbitantes valores das campanhas eleitorais. A necessidade de financiamento campeia em terreno vasto e livre para a associação entre a política e o crime. O sistema, assim, torna-se refratário à modernização e à transparência. Formam-se pactos e corporações, a mudança é mais custosa, a aprovação de projetos submete-se à lógica de esquemas, o Congresso vira balcão, o patrimonialismo se fortalece. A burocracia se expande e elevam-se os custos Brasil. Não há reforma, o desenvolvimento e o bem-estar estagnam ou ficam aquém do possível. Em que pesem idiossincrasias dos governos, o processo é mais amplo que eles.Paradoxalmente, uma parcela da sociedade, formada por setores médios, urbanos, que arcam com custos por meio de impostos e não percebem retornos significativos do Estado, vivendo o caos das cidades, desenvolve ainda maior asco à política. Indigna-se, denuncia e maldiz: cria ícones nos parlamentos e na mídia. Representa a fúria, mas não produz nada de concreto.Antes de captar o processo e suas causas, buscar a transformação, desenvolve-se uma postura blasé. Confere-se responsabilidades à "falta de cultura desse povo" (sic), à "ignorância dos outros", "aos políticos em geral". Muito facilmente, taxam-se os desafetos de "governistas" ou "golpistas". O fato é que prolifera todo tipo de preconceito, restrições estéticas regionais e sociais. Diletantismo de salões da classe média, não se busca alternativa. Romantizam-se, apenas, as soluções, oposicionismo que termina em si próprio, um reacionarismo de ânimo. Surge daí menos uma crítica substantiva do que concorrencial, uma oposição performática, baseada na histeria e no moralismo. Não raro, no farisaísmo. Não importa qual seja o governo. Se do PT, essa oposição gravitará em torno do PSDB, ou vice-versa. Foi nesse pântano que nasceu e se desenvolveu a figura pública de Demóstenes Torres. Quem o pariu foi essa mentalidade antipolítica raivosa e, no entanto, vazia. Mas quem o pariu não o embala: sua queda foi sucedida de enorme silêncio e alguns risos amarelos.

CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER - INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA

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